Machado e a misoginia
Sempre gosto de trazer para esse espaço de escrita, textos que conversem com o meu cotidiano, estabelecendo uma ponte entre presente e passado. Mesmo com histórias pessoais, espero que o meu eu deixe de ser individual e passe a ser geral. Que as minhas memórias se encontrem com as de quem me lê. E todas elas juntas nos façam sentir o prazer que só a leitura rememorada desperta.
Mas, quero pedir licença para hoje escrever sobre um personagem da clássica literatura brasileira. De perto, o que quero mesmo é falar mal. E se é pra isso, o melhor é que seja pelas costas. Caso contrário, não tem graça alguma. Por essa razão, espero não trazer de maneira direta as palavras do senhor Bento de Albuquerque Santiago. Ele já recebeu holofotes demais. Já destilou seu veneno e contaminou muitas mentes sãs. Agora é a hora d’eu destilar o meu. Porém, longe dos achismos, busco outros personagens para embasar o que pontuo.
Não trago nenhuma novidade quando afirmo que o seu criador foi (e ainda é) um gênio. Machado soube construir personagens icônicos. Contudo, a leitura de outros textos do autor, me levam a afirmar que alguns personagens não tão conhecidos são mais complexos e completos que o mimado Bentinho.
Aprendemos na escola que o Realismo, movimento literário no qual Dom Casmurro está inserido, traz a crítica a moralidade, atacando os três pilares que a sustentam: a sociedade burguesa, a igreja e a família. Se não foram estas as palavras da tua professora de Literatura, foram outras bem parecidas, garanto!
De verdade, era o que estava escondido, a sujeira varrida para debaixo do tapete que o autor gostava de escancarar e mostrar quão hipócritas eram os moralistas de sua época.
Alguma semelhança com a vida atual, não é mera coincidência.
Bentinho era um garoto abusado, tinha um catatau de gente que ele usava para que suas vontades fossem satisfeitas. Ele não se intimidava. Mexia uns pauzinhos aqui, outros ali, fazia beicinho, choramingava no colo da mamãe e pronto. Lá vai outra pessoa pagar a promessa no lugar dele. Livrou-se da vida celibatária.
Era obcecado por Capitu, um narcisista clássico. No início a envolveu em um encantamento avassalador, na sequência, o ciclo de abuso começou com a gradual desvalorização. Por fim, a descartou de sua vida, como se fosse um objeto qualquer.
Machado criou outros personagens tão perversos quanto Bentinho. E não estou falando sobre Brás Cubas, mas sobre Fortunato, do conto A causa secreta e Luís Negreiros do também conto O relógio de ouro. Como todos os outros escritos, são extraordinários. Recomendo.
O primeiro era um médico sádico, casado com Luísa. Ele toma como amigo Garcia e insiste para que este frequente sua casa. A intenção do doutor é a pior possível: se divertir ao ver a morte de órgão por órgão da própria esposa tísica, ao mesmo tempo que se compraz com o desespero do amigo, agora apaixonado pela moribunda:
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. (Assis, 1885, n.p.).
Também Luís Negreiros sentia comprazer em torturar Clarinha, sua esposa, acusando-a de traí-lo. Daí a brutalidade repentina para saber a origem de um relógio que aparece de repente sobre um móvel. A agressão é tão desmedida que, ao final, ele grita: “Responde, demônio, ou morres!” (Assis, 1873, n.p.). A mulher já desfalecida de forças, submissa e amedrontada ao extremo, responde:
[...]
– Espera! Disse ela.
Luís Negreiros recuou.
– Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá; foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas.
“Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. – Tua Iaiá”.
Assim acabou a história do relógio de ouro. (Assis, 1873, n.p.).
São três personagens muito parecidos: homens, senhores da moral e dos bons costumes, que acusam, ferem de morte suas esposas, as torturam pelo pecado que eles mesmos cometeram.
Contudo vocês podem me perguntar:
- Qual é a traição de Bentinho?
A amizade que sentia por Escobar era maior que o amor por Capitu. Trocou-a. O amigo passou a ser o alvo de sua doentia obsessão. Quando o perde, a compulsão se volta novamente para a esposa, mas agora o sentimento é adornado por uma tristeza infinda.
Quando Escobar é tragado pela ressaca da praia, Bento de Albuquerque Santiago, agora frustrado, traz de volta a fixação para a mulher: a culpa pela sua casmurrice, desdita e desgraça. Capitu é, mais uma vez, vítima do marido. Se ele não podia mais ser feliz, por que ela seria? Afastando a mulher e o próprio filho de si, estendeu a estes o seu flagelo. Novamente a penitência não seria paga por ele.
Machado traz à tona mais um tipo doentio que habita a sociedade burguesa, entretanto essa sociedade patriarcal destila sua misoginia ao acusar Capitu de infiel e traidora, responsabilizando-a pelo desfazimento do lar, doce lar.
Sinto-me aliviada, falei e ponto
Referências:
ASSIS, Machado de. A causa secreta. Rio de Janeiro. Nova Aguilar 1885. v. II. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000262.pdf. Acesso: 30 de março de 2025.
ASSIS, Machado de. O relógio de ouro. Rio de Janeiro. Nova Aguilar 1873. v. II. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000192.pdf. Acesso: 30 de março de 2025.