Cada um sabe um, mas eu prefiro o meu virundum
Alguns textos fazem festa em nossa vida. Garanto que cada um de nós tem gravado na memória, trechos de algum escrito que leu ou ouviu. Marcou e se tornou inesquecível. Isso acontece porque as palavras são entidades vivas e fazem festa dentro de nós.
Agora, se minha intenção é falar de festa provocada pelas palavras, não posso deixar de lado o poder da música. Quando a “combinação de ritmo, harmonia e melodia” (ENCICLOPÉDIA DE SIGNIFICADOS, 2024, s/p) se soma as vivas palavras, causam um rebuliço dentro da gente. E como causa!
Pronto, misturei letra e melodia! Esses dois parágrafos anteriores eram apenas para isso, peço perdão pela enrolação.
Por falar em música e enrolação, quem nunca disse: “entrei de caiaque no navio” no lugar de “entrei de gaiato no navio” quando reproduziu pela primeira vez o Melô do Marinheiro[1] dos Paralamas do Sucesso?
Se você saiu ileso dessa, diga-me se nunca imaginou o Claudio Zoli na madrugada, tocando de biquíni sem parar? Entretanto, o que acontecia era que ele estava ouvindo, “Na madrugada, a vitrola rolando um blues/ Tocando B. B. King sem parar”[2]
Essas confusões sonoras (fonéticas) acontecem em todos os idiomas, não se preocupem. No Brasil, recebe o nome de “virundum” porque muitas pessoas assim cantam o primeiro verso do Hino Nacional:
“O virundum Ipiranga as margens plácidas” em vez de “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”. Por essa razão, a percepção imprecisa de uma palavra ou conjunto de palavras, por outra(s) com mesmo som, numa canção foi assim denominada. (MARMOTA, 2003, s/p).
Eu encheria todas as páginas do nosso Jornal Noroeste se trouxesse os inúmeros virunduns que existem. Mas quero me deter apenas em dois: um que entrou pelos ouvidos de um querido amigo e o outro pelos meus.
Não há dúvida que Oceano é uma das maiores composições do Djavan e deve ser colocada entre as maiores músicas brasileiras. Apesar de toda merecida glória, meu amigo Fabrício, casado com minha amiga-irmã, Ane, ficou decepcionadíssimo quando descobriu que o deserto da canção não é amarelo. Olha a confusão:
O músico canta: “Amar é um deserto e seus temores /Vida que vai na sela dessas dores”.
Meu amigo ouvia e cantava:
- Amarelo deserto e seus temores/Vida que vai na sela dessas dores
A métrica cabe direitinho e a palavra “amarelo” cai como uma luva. Afinal, eu consigo visualizar o deserto como um mar amarelo amedrontador. Errado, Fabrício não estava. Djavan, muito menos.
O fato é que essas “reescritas” fazem sentido para nós, me aventuro audaciosamente a dizer que é uma releitura da obra. Sinto pelos autores, mas frusta muito quando o virundum se desfaz.
Bom, para encerrar essa virundesca escrita, em recente crônica publicada aqui nesse jornal, eu trouxe um refrão carnavalesco que acompanha a música Chame Gente[3]. Foi com ela que aconteceu minha última decepção.
Sempre imaginei que Moraes Moreira e Armandinho me convidavam a abraçar o poeta: “É um verdadeiro enxame, chame, chame gente/Que a gente se completa enchendo de alegria” abraça aí o poeta/ Ah! Abraça aí o poeta.
Sempre me imaginei escalando o monumento e tirando uma foto com Castro Alves. Só que não é ao “vandalismo” que os autores convidam, mas sim que “É um verdadeiro enxame, chame, chame gente/Que a gente se completa enchendo de alegria a praça e o poeta/Ah! A praça e o poeta.
Não é abraçando o poeta que as pessoas ficarão repletas de alegria, mas estando repleta a praça, tanto esta, quanto as pessoas e o poeta com a mão estendida estarão plenos.
Essa interpretação é linda, mas refiro meu virundum. Sinto muito.
E olhem só, vou confessar baixo para não chamar atenção das autoridades:
- Estou planejando retornar a Bahia, escalar o monumento e abraçar o sensível e ardente Castro Alves. Evidências surgirão.
REFERÊNCIAS
ENCICLOPÉDIA DE SIGNIFICADOS. Música. Disponível em: O que é Música? Conceito, significado e definição - Enciclopédia Significados. Acesso em 06 de junho de 2024.
MARMOTA. André. Você sabe o que é “virundum”? Disponível em: Você sabe o que é “virundum”? | Marmota, Mais dos Mesmos. 2023. Acesso em 06 de junho de 2024.
[1] Melô do Marinheiro é a quarta faixa musical do álbum Selvagem de 1986 da banda/trio Os Paralamas do Sucesso. Composta de Bi Ribeiro e Joao Barone, imortalizada na voz Herbert Vianna, o vocalista.
[2] Noite do Prazer é uma canção composta por Arnaldo Brandão, Cláudio Zoli e Paulo Zdanowski. Estourou nacionalmente em 1983, na voz de Zoli quando este ainda integrava a banda Brylho. Integra o álbum da com nome homônimo ao da música.
[3] Chame gente composição dos grandes Moraes Moreira e Armandinho que, em 1985, irrompeu os ares baianos, tornando-se um dos maiores hinos do carnaval da Boa Terra.