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Burocracia docente


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 19/01/2024
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A docência é uma atividade complexa. Por complexa quer dizer que ela não se reduz ao ato de ensinar, ela envolve mais coisas do que a sala de aula. Em especial o professor em início de carreira precisa saber de algumas atividades essenciais à docência. Para atingir esse objetivo de (in)formar futuros professores e recém-formados, falarei das atividades que desenvolvo no meu trabalho, e isso sem fazer um rol taxativo.

Antes do ano propriamente começar é preciso que o professor elabore um plano de trabalho docente. Esse plano envolve minuto por minuto do tempo do professor. Costumo dizer que às vezes dá mais trabalho organizar esse plano do que o próprio trabalho.

Para quem trabalha em Institutos Federais e Universidades há outro plano fundamental a ser preenchido de tempos em tempos: o plano de pesquisa. É possível planejar vários anos de estudos em um só plano, mas é necessário regularmente entregar relatórios detalhados. Um relatório detalhado implica artigos e apresentações de trabalho.

Uma vez que se trata de falar da burocracia docente, algo que não pode faltar é o plano de ensino. Cada disciplina tem um plano de ensino a ser adequado a cada ano. É o momento de prever conteúdos, avaliações, técnicas de ensino e referências.

As aulas se iniciam e logo os docentes se veem cheios de diários de classe. Às vezes cometo o erro de acumular vários dias sem preencher e depois me vejo perdido. Como o próprio nome diz, é um “diário”, logo, deve ser preenchido diariamente. E isso leva um tempo em sala, pois envolve fazer a chamada de 40 alunos e colocar o conteúdo nesse documento. Ao final dos bimestres e do ano é preciso entregá-los impecáveis. Isso não é tarefa fácil e prazerosa.

No caso do IFPR, eu leciono para o ensino médio e para Química e, em especial neste curso, eu oriento monografias. Cada monografia é um vai e vem de correções e de formulários. É preciso organização tanto do aluno quanto do orientador, pois os prazos são consumidos rapidamente.

Existe professor sem aluno? E existe professor sem preparação de aulas? A questão é que ninguém vai para a sala para “bater papo”. É preciso estudar. A base do magistério é o conteúdo. Então, preparar aulas é essencial à atividade docente, e isso demanda um longo tempo.

Conteúdo ministrado, conteúdo cobrado. Trabalhos e avaliações fazem parte do trabalho docente. Muitas vezes esses instrumentos dão mais trabalho ao professor do que ao aluno. Por isso digo aos meus alunos de licenciatura: cuidado para não prepararem instrumentos avaliativos que venham a sufocar a vida do docente. E os alunos dirão no dia seguinte após a atividade aplicada: “já corrigiu?”.

Final de bimestre vem uma maratona de compromissos, dentre eles os conselhos de classes. Eu, que ministro várias disciplinas, acabo por participar de dez conselhos por bimestre. É preciso paciência para ouvir professores falando nessas situações e, também, para justificar um ou outro conceito atribuído. É um momento privilegiado para ver o aluno como um todo, mas, também, pode se tornar um momento meramente formal de “aprovo” ou “reprovo”.

Reunião de pais e mestres é um dos momentos que mais gosto e que, ironicamente, mais tenho raiva. É o momento que vejo o meu aluno mais velho, ou seja, só de olhar o pai ou a mãe já digo: “você é o pai do José”. Nessa situação compreendemos de forma ímpar o aluno, mas também ouvimos discursos vazios do tipo: “ano que vem será diferente”, “bimestre que vem será diferente”, quando, na prática, tudo se repete.

Cada professor faz parte de um ou mais colegiados. É nesse ambiente que muitos casos são decididos, como a organização do curso como um todo. É nesse ambiente, também, que se verifica se o curso é forte ou não. Infelizmente, às vezes, as reuniões são vazias, os egos são grandes e a conversa sem propósito impera.

Quem participa de atividades de gestão, uma pilha de papéis e muitas reuniões são acrescentadas. É preciso organização para não se perder em meio a tantos prazos. A gestão escolar é das tarefas mais complexas existentes, uma pena que as licenciaturas pouco – ou nada – preparam o gestor escolar. A pessoa se vê no cargo de direção e não sabe dirigir nada. Felizmente, há muitas pessoas que se comprometem, se capacitam e fazem a educação acontecer.

Pelos exemplos até aqui destacados já é possível ver que a docência é uma atividade complexa. Porém, um docente ainda tem trabalhos para publicar, normas para seguir de revistas e tem que arrumar tempo para apresentar trabalhos. Arrumar tempo para viajar a trabalho e escrever significa labuta dobrada. As aulas não param porque o docente tem de se qualificar. É por isso que licenças para o magistério são uma questão de necessidade, isto é, de tempo para aprimoramento. É quase inimaginável um professor com quarenta aulas ainda ser um pesquisador.

Outro aspecto importante na vida docente é a busca por recursos para pesquisas. acompanhar editais de agência de fomento e concursos são fundamentais para que a pesquisa aconteça. Cada edital vem acompanhado de extensos formulários, que, se aprovada a proposta, seguem de relatórios parciais e final. Cada centavo gasto precisa ser devidamente justificado, sob pena do pesquisador restituir do próprio bolso. Não é difícil verificar na vida acadêmica a burocracia substituir a criatividade.

Tudo acontece simultaneamente na vida do professor. Vale a pena aqui flertar com a redundância. Cada aula não deve ser um bate papo, conforme dito, o que implica que o professor terá de ler, assistir a filmes, documentários, escrever e tudo o mais que gera conhecimento para que a aula seja também ela momento de conhecimento. Quando o professor não consegue estudar no trabalho, ele acaba por estudar em casa. Fato: dificilmente o professor trabalhará só as horas contratuais. Pilhas de provas se acumulam na casa de um professor.

Os alunos precisam de momentos com o professor. No Instituto há 4 horas semanais para atendimento acadêmico. Às vezes eles aproveitam o tempo, às vezes não, mas o fato é que o professor dificilmente atenderá só 4 horas por semana os alunos. As redes sociais e os e-mails do professor lhe custam muito tempo além do que é previsto no plano de trabalho e, não custa lembrar, ninguém remunera um professor a mais por isso.

Final de ano é uma avalanche de compromissos, dentre eles, bancas de trabalhos de conclusão de curso. É quando o professor recebe trabalhos de vinte, trinta, quarenta páginas ou mais para ler – e na maioria das vezes em um prazo reduzido. É preciso ler para que o aluno tenha um retorno ao seu trabalho.

De tempos em tempos, no caso dos Institutos, a cada dois anos os professores progridem na carreira. É o momento de fazer um memorial de tudo que foi feito: aulas, artigos, colegiados, eventos, etc. O formulário a ser preenchido não raro ultrapassa 100 páginas. É preciso organização para crescer na carreira. Não é algo automático.

Por fim, tudo que foi dito nesse texto é feito (isto é, se for feito nesse lugar) em uma sala de professores abarrotada de colegas de trabalho. São raríssimos os lugares que os professores têm uma sala individual ou que dividem com poucos colegas. Há salas tão coletivas que chegam a ser uma só para todo o colégio. A minha sala divido com 16 colegas. Apesar disso, é nesse ambiente que o professor precisa executar o seu complexo ofício. Não ao acaso muitos professores levam serviço para casa, pois, se não bastasse a alta carga de trabalho para pouca hora de manutenção de ensino (a também chamada “hora-atividade”), a própria sala de professores não favorece a sua profissão.

A série de trabalhos desenvolvida pelo professor o torna um mártir? Não, até porque se tomarmos essa direção logo a docência será vista enquanto sacerdócio e enquanto caridade, sendo que há muito profissionalismo no magistério. Mas, a questão é que a docência é uma tarefa complexa.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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