Uma incomensurável bênção
Romanos 3.1-2 (ARA): “1 Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? 2 Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus.”
Vimos anteriormente, na exposição sequencial do capítulo 2 de Romanos, o apóstolo Paulo apresentando uma contundente crítica à maneira com que os judeus estavam lidando com a circuncisão e a posse da lei. Os judeus estavam colocando a esperança de salvação neste rito ordenado.[1]
Paulo contraria completamente essa expectativa, mostrando que a verdadeira circuncisão – v. 28 e 29 – é a do coração, operada pelo Espírito Santo internamente, removendo a velha natureza e implantando em nós um princípio de nova vida.[2]
Agora, no início do capítulo 3, Paulo “(...) parece ouvir uma objeção”.[3] A natureza do texto indica que Paulo se adianta a uma possível objeção dos judeus[4] – seus interlocutores – que está no v. 1: “Qual é pois a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?” Em outras palavras, o judeu poderia questionar Paulo, com base no que ele disse no versículo anterior, que: se a circuncisão que vale é a “(...) que é do coração, no espírito,” (Rm 2.29), qual a utilidade da circuncisão e qual a vantagem em ser judeu? Note comigo dois termos importantes: utilidade (em referência à circuncisão) e vantagem (em relação ao ser judeu).
Primeiro, o termo utilidade (?φ?λεια/?pheleia) tem o sentido de lucro, benefício, ou ganho. O judeu estaria questionando a Paulo, haja vista o que ele acabara de falar, qual teria sido então o benefício de ter ele sido circuncidado, obedecendo uma ordenança do Senhor no Antigo Testamento? Deus ordenou esta prática sem nenhum propósito abençoador?
Segundo, o termo vantagem (περισσ?ν/perisson) pode significar também superioridade ou preeminência. O judeu também questiona, afinal, qual é a diferença, em termos qualitativos, dos judeus para com o resto do mundo, se ser judeu é uma questão interna (Rm 2.29)? Não foi Deus que separou visivelmente um povo para si, chamando-lhe de Israel?
São objeções com sentido e coerência, e por isso Paulo lhes dá atenção e resposta devida. No versículo 2, Paulo responde, dizendo: “Muita, sob todos os aspectos.” Primeiro, Paulo responde que tanto as utilidades da circuncisão, como as vantagens de fazer parte do povo do pacto eram várias, e isso “sob todos os aspectos”. Estes vários aspectos das vantagens de fazer parte do povo judeu, por meio do rito da circuncisão, são apresentados de forma mais específica, e menos genérica, no capítulo 9 de Romanos. São “(...) privilégios que as outras nações não participavam.”[5]
Porém, entre os privilégios de Israel, Paulo destaca e reconhece, no final do v. 2, como sendo de maior importância[6] o fato de que “aos judeus foram confiados os oráculos de Deus.” Paulo está dizendo que, dentre as muitas bênçãos advindas do fato de terem sido escolhidos por Deus como nação, e separados visualmente por meio da circuncisão, está a gloriosa responsabilidade de terem recebido o encargo da revelação especial de Deus,[7] isto é, os oráculos de Deus, que são as declarações divinas (λ?για/logia) sobre Sua vontade e propósito para o mundo criado, e que foram creditadas (?πιστε?θησαν/episteuth?san) à Israel.
Paulo não está dizendo que Deus delegou à Israel a produção humana de declarações divinas contidas no Antigo Testamento, como se as Palavras de Deus fossem criadas por Israel; mas sim que Deus se serviu daquela nação, separada dentre todas as outras através de um sinal visível da circuncisão, para, por meio de profetas, comunicar à própria nação e ao mundo Sua vontade de forma especial. Porém, como veremos nos versículos seguintes, prvilégios implicam deveres, e honras estão de mãos dadas com responsabilidades. Teria Israel vivido à altura de uma benção tão incomensurável? Veremos isso no próximo texto, se Deus permitir.
Por fim, aprendamos com a exposição de hoje três importantes lições: 1) O texto nos ensina o caráter divino das Escrituras. Deus é o autor das Escrituras. Os oráculos são de Deus, e não dos homens. Toda a Bíblia é inspirada pelo próprio Deus. 2) O texto nos ensina que Deus falou, na língua dos homens, mais propriamente o hebreu, acomodando-se à fragilidade humana para comunicar Seu ser e obras, seus propósitos soberanos, sua graça e juízo. Deus se revelou, e fez isso através de palavras registradas e preservadas ao longo da história. 3) O texto nos ensina que Israel, como povo que estava debaixo da aliança da circuncisão, teve um papel importantíssimo no plano redentivo de Deus, pois foi ela a nação escolhida e abençoada em receber essas palavras, a revelação especial de Deus, com mandamentos, alianças, promessas, ameaças, culto, legislação, etc., que apontavam para a vinda do Messias, sua pessoa e obras como Salvador. Sobre isso, observou Calvino, “Se ao Senhor aprouver agraciar uma nação com a dádiva de sua Palavra, tal deve ser considerado como uma incomensurável bênção (...)”[8] Que bênção para os judeus terem sido guardiões dos oráculos de Deus!
Aprendamos hoje como Igreja, o povo do pacto em Cristo, a sermos gratos a Deus por ter nos entregue a Sua Palavra e, com temor e tremor, vivamos de modo digno dessa incomensurável bênção.
[1]O comentarista John Stott explica que os judeus tinham “(...) uma confiança quase supersticiosa no poder salvador de sua circuncisão”, e que haviam na época epigramas rabínicos que diziam que “o homem circuncidado não vai para o inferno” e “A circuncisão livrará Israel do inferno”. (Cf. STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 104.)
[2]Como declarou o teólogo presbiteriano Louis Berkhof, “A regeneração é o ato de Deus pelo qual o princípio da nova vida é implantado no homem, e a disposição dominante da alma é tornada santa.” (Cf. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 432).
[3]HENDRIKSEN, William. Comentários do Novo Testamento - Romanos. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011. p. 141.
[4]Segundo Craig. S. Kenner, “(...) Essas são objeções do interlocutor imaginário, um recurso comum para desenvolver o próprio argumento em uma diatribe.” In KEENER, Craig S. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 513.
[5]BRUCE, F. F. Romanos. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2011. p. 78
[6]Isso se evidencia pelo uso do termo “Principalmente (πρ?τον/próton)”, no v.2, que no grego traz o sentido de “especialmente”. Cf. CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p. 122. Ou seja, dentre os muitos privilégios e vantagens em ser judeu e circuncidado, está, de forma especial, terem sido confiados a eles os oráculos da Palavra de Deus.
[7]O teólogo neocalvinista holandês Herman Bavinck (1854-1921) em sua dogmática resumida Magnalia Dei [As Maravilhas de Deus] (1909), defende que existem dois tipos de revelações da parte de Deus — isto é, de Deus se fazer conhecido aos homens —, a geral e a especial: “Na revelação geral, Deus faz uso do curso natural dos fenômenos e do curso natural dos eventos; na revelação especial, ele frequentemente emprega meios, visões, profecias e milagres incomuns para torná-lo conhecido ao homem. O conteúdo do primeiro tipo são especialmente os atributos de poder, sabedoria e bondade; o de segundo tipo são especialmente a santidade e a justiça de Deus, a compaixão e a graça.”
[8]CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p. 123.
Fernando Razente
Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.