A justiça de Deus
Romanos 1.17(a): “[...] visto que a justiça de Deus se revela no evangelho”
Nas últimas semanas estive expondo as características gerais do evangelho de Jesus Cristo, como seu poder, propósito, condição e extensão (Rm 1.16). Hoje, minha intenção é expor o resultado do evangelho a partir da parte “a” do versículo 17.
Há uma conexão lógica entre o que Paulo havia afirmado no verso 16 com o que agora é declarado no verso 17. Paulo havia dito que o evangelho é “[...] o poder de Deus para a salvação” e a razão disso é que “[...] a justiça de Deus se revela no evangelho” ou como em outras traduções, “[...] no evangelho é revelada a justiça de Deus.” (Rm 1.17a)
Diante disso, confronta-nos a seguinte pergunta: o que quer dizer “a justiça de Deus” que o evangelho revela? Essa pergunta é importante. Por exemplo, Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e professor de teologia germânico que se tornou reformador e ministro protestante, antes de sua conversão, declarava que tinha pavor da expressão “justiça de Deus” encontrada em Romanos 1.17.
Segundo ele mesmo registrou: “[...] eu odiava esta expressão “justiça de Deus”, pois o uso e o costume de todos os professores me havia ensinado a entendê-la filosoficamente como justiça formal ou ativa (como a chamam), segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos.”[1] Contudo, após uma longa e adequada consideração teológica desta expressão, todo o evangelho se revestiu de glória para Lutero, de modo que ele pôde concluir: “[...] me senti como que renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso.”
Portanto, não desprezemos essa importante pergunta: o que quer dizer “a justiça de Deus”? Segundo o teólogo John Stott, o significado da expressão dikaiosyne theou (justiça de — ou procedente de — Deus) tem sido discutido amplamente no decorrer da história da igreja.[2] Porém, não resta dúvida de que Paulo usa essa expressão no sentido de ser “[...] um estado de justiça que Deus requer de nós se quisermos comparecer diante dele, que ele nos propicia através do sacrifício expiatório na cruz, que ele revela no evangelho e que concede gratuitamente a todos os que confiam em Jesus Cristo.”[3]
Conforme Stott, esse “estado de justiça que Deus requer de nós” para a nossa salvação é nada menos do que a perfeição moral. Já que Deus é completamente santo e justo, ele não pode aceitar em sua presença eterna pecadores injustos. Por isso, esse estado de justiça perfeita é exigido de nós na Lei. Porém, como pecadores, naturalmente não temos esse estado de justiça, por isso o próprio Deus “nos propicia”, nos fornece, de graça. Aonde? Paulo responde: “[...] se revela no evangelho” (Rm 1.17).
Isso significa que ao olharmos para a vida e morte de Jesus Cristo — o centro do evangelho como vimos em Rm 1.3(a): “com respeito ao seu Filho”[4] — contemplamos ali e dali obtemos a justiça, a perfeição moral que Deus exige de nós, sendo concedida gratuitamente a “[...] todo aquele que crê” (Rm 1.16d). Quando cremos no evangelho de Jesus Cristo, somos lavados de nossos pecados em seu sangue e também revestidos da sua perfeita justiça, a justiça necessária para a salvação como um dom ao pecador que crê.[5]
Como brilhantemente observou o hinodista, poeta e pastor escocês Horatius Bonar (1808-1889) em seu clássico A Justiça Eterna (1872): “[...] o homem que crê em Jesus Cristo, a partir do momento que crê, não só recebe a absolvição divina de toda a culpa, como também se torna legitimamente possuidor de Sua Justiça infinita, e de tudo quanto essa justiça, que se tornou sua, oferece-lhe como direito; e ele é, dali em diante, tratado por Deus de acordo com a perfeição Daquele que é perfeito [Jesus], com se essa perfeição fosse sua.”[6]
Por fim, note que a justiça é “de Deus”, pois ela está sendo contrastada com a nossa justiça própria que pretensamente pensamos ter ou estabelecer como padrão para Deus nos aceitar. Muitos, assim como fizeram os judeus ao ouvirem a pregação (Rm 10.13), querem ser aceitos por Deus pelos seus próprios méritos. Porém, precisamos reconhecer que nossas melhores obras são como trapos de imundícia (Is 64.6), e que fiados em nossa própria justiça nada obteremos do Senhor.
Precisamos nos submetermos humildemente à justiça perfeita que vem D’Ele e que está em Jesus, nosso Salvador. A justiça de Deus, é nossa única alternativa, pois ela não é um artifício ou invenção humana, mas “[...] é a iniciativa justa tomada por Deus ao justificar os pecadores consigo mesmo, concedendo-lhes uma justiça que não lhes pertence, mas que vem do próprio Deus.”[7]
Na semana que vem, se Deus permitir, avançaremos para a parte “b” de Romanos 1.17.
Até a próxima e que Deus te abençoe!
[1] Citação extraída da introdução da primeira edição de suas obras em latim em 1545. Cf: “A Epístola do Bem-aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos”. In: Martinho Lutero; Obras selecionadas. vol. 8. Trad. Luís H. Dreher. São Leopoldo/RS: Sinodal, RS: Concórdia, 2003, pp. 242-243)
[2] Cf. as posições de Campbell, p. 162; Ziesler (1989), p. 70; Käsemann, pp. 23ss e Wright, p. 234.
[3] Stott, 2007, p. 67.
[4] Cf. https://jornalnoroeste.com/pagina/colunas/o-centro-do-evangelho
[5] Cf. minha exposição de Romanos 1.16-20 em: https://www.youtube.com/watch?v=Xhjwrpv8E7c&t=3851s
[6] BONAR, Horatius. A Justiça Eterna: como o homem será justo diante de Deus? São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012. p. 89.
[7] Stott, 2007, p. 68.
Fernando Razente
Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.