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O que Paulo quis dizer com “a letra mata”?


Por: Fernando Razente
Data: 02/03/2022
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“[...] a letra mata, mas o espírito vivifica.” (2 Coríntios 3.6)

Quem escreveu esse texto foi Paulo, o apóstolo, que antes havia sido fariseu e fazia parte daquele partido religioso dos judeus que tinha como maior característica um apego profundo pela externalidade da lei, pelo formalismo e ritualismo (Lucas 11.39-40). Agora, Paulo é um apóstolo de Jesus, com uma visão completamente diferente da que tinha a respeito da natureza e da função da lei, pois em Cristo foi-lhe concedido um novo entendimento. 

Esse texto de 2 Coríntios 3.6 está na sua segunda carta destinada aos cristãos coríntios. Em sua segunda viagem missionária, Paulo pregou o evangelho na cidade grega de Corinto. Quando chegou na cidade, Paulo conheceu Áquila e Priscila, com quem trabalhou fazendo tendas. Mas ao descobrir que havia sinagogas naquela cidade, Paulo passou a discorrer aos sábados com judeus e gregos a respeito do evangelho. 

A dura rejeição e oposição dos judeus levou Paulo a ir pregar para os gentios. Mas, pela graça de Deus, o principal daquela sinagoga chamado Crispo se converteu crendo em Jesus, juntamente com toda a sua família e também muitos dos coríntios, ouvindo o evangelho, também criam e eram batizados. Apesar disso, Paulo parece ter ficado com medo por conta da oposição, e então Jesus apareceu a ele numa visão, dizendo que ali haviam muitos eleitos do Senhor que ainda precisavam crer de coração através do ministério paulino. 

Assim, Paulo permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus. Tempos depois, Paulo foi levado pelos judeus ao tribunal, perante Gálio, procônsul da Acaia, e o acusavam de persuadir os homens a adorar a Deus de modo contrário à lei. Mesmo com a situação tão difícil, Paulo permaneceu em Corinto, fortalecendo a nova comunidade cristã ainda por muitos dias, mas por fim, despedindo-se dos irmãos da igreja, navegou para a Síria, levando em sua companhia Priscila e Áquila (Atos 18.1-18).

Pelas cartas de Paulo, notamos que depois de sua saída da cidade, os judeus de Corinto passaram a atacar a igreja com falsos ensinos e falsos mestres e também atacavam a Paulo, com calúnias e falsos testemunhos. Na sua primeira carta aos coríntios, Paulo lidou com várias questões internas da igreja, muitas relacionadas a falsos ensinos. Já o contexto do que Paulo escreve em sua segunda carta é, em grande parte, a defesa do seu ministério como ministro da nova aliança. Quando lemos 2 Coríntios 3.6, fica claro perceber que Paulo não está falando da diferença entre teologia e espiritualidade. Esse não é seu propósito. Seu propósito é mostrar a diferença entre a antiga aliança da nova aliança e defender seu ministério como ministro da nova aliança. Mas, afinal, como Paulo chegou neste assunto? 

Ao que tudo indica, Paulo estava sendo acusado de ser mentiroso e dúbio, por ter dito que iria retornar à Corínto, mas não tinha retornado. Para defender-se das acusações de ser um mentiroso, Paulo explica os seus motivos no capítulo 1.1-24 até 2.1-17. Quando chega no capítulo 3, Paulo para e faz um questionamento com base na defesa que estava fazendo de si mesmo: “Começamos, porventura, outra vez a recomendar-nos a nós mesmos? Ou temos necessidade, como alguns, de cartas de recomendação para vós outros ou de vós?” (v. 1). 

Em outras palavras, Paulo está dizendo o seguinte: “Será que terei mais uma vez que provar a legitimidade do meu ministério? Será que terei de recomendar a mim e meus auxiliares mais uma vez a vocês, coríntios, com palavras escritas? E mais, será que temos necessidade de escrever cartas sobre vocês ou receber de vocês cartas que confirmem nosso apostolado?”. 

Paulo está questionando o fato de que para “alguns” a mera formalidade da letra em uma carta de recomendação já era suficiente para atestar um fato; e o apóstolo se questiona se deveria proceder assim também. Mas, sua resposta é surpreendente. Paulo olha para os cristãos coríntios, como filhos na fé, e diz: “Vós sois a nossa carta de Cristo, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos os homens, estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações.” (v. 2-3). 

Paulo está simplesmente dizendo que a maior prova da genuinidade de seu ministério é o fato de que ele não levou aos cristãos coríntios uma mera letra de doutrina formal, mas que essa doutrina do evangelho transformou radicalmente a vida dos coríntios; não ficou só no papel, foi escrita de uma maneira sobrenatural no coração dos coríntios, em tábuas de carne, pelo Espírito do Deus vivente, através do ministério paulino. Aqui, Paulo está dando destaque ao seu ministério na nova aliança, mostrando que a carta de seu apostolado não se trata de mera formalidade de escrita, mas que esse ministério produziu mais que meras letras mortas, mas produziu pessoas vivas e convertidas de coração, vivificadas através do poder do Espírito do Deus vivente. 

Mais uma vez, é como se Paulo estivesse dizendo: “Irmãos, por que eu deveria me preocupar em escrever uma mera formalidade para defender meu ministério dessas acusações? Olhem para vocês mesmos! Vocês foram transformados pela operação do Espírito Santo no coração de vocês, e isso através do meu ministério. Preciso recomendar ou receber alguma recomendação quando tenho isso?”. Essas experiências de pessoas sendo internamente transformadas através de seu ministério, é o que levava Paulo a ter confiança em Deus (v. 4), pois a sua capacidade de gerar filhos na fé vinha do poder suficiente de Deus (v. 5), que capacitou Paulo e seus cooperadores para serem ministros de uma nova aliança (v. 6). Que nova aliança é essa? Trata-se da nova aliança prometida em Jeremias 31.31-40.

Em Jeremias, lemos que Deus prometeu que na nova aliança imprimiria na mente (aspecto interno) e inscreveria no coração (aspecto interno) do seu povo as suas leis. Diferente da primeira aliança, que tinha suas maiores características na aparência externa (como a circuncisão e a escrita do decálogo), essa nova aliança teria como principal característica o aspecto interno — a interioridade —, a aplicação da lei divina na alma do eleito pela atuação e poder do Espírito Santo, fazendo Deus reinar nos corações (Lucas 17. 20-21). É dessa aliança ou poderíamos chamar “Ministério do Espírito Santo”, que Paulo foi habilitado para ser ministro. Não é a aliança da letra, mas do espírito (v. 6). Mas o que Paulo quer dizer por “letra” e “espírito” em seguida? 

Ao diferenciar letra e espírito no versículo 6, Paulo está fazendo um contraste entre realidade externa e formal de realidade interna e espiritual. A nova aliança é muito mais interna do que externa. Por quê? Por que a letra  grama (γρ?μμα), sem a transformação interna, mata. Como assim? Ora, a mera leitura da lei, sem a transformadora e regeneradora aplicação do Espírito Santo em nosso coração (Tt 3.5), não pode fazer nada senão nos condenar à morte por sermos incapazes de cumprí-la por nós mesmos.  Ninguém pode por suas próprias forças e arbítrio cumprir a lei do Senhor. 

Na nossa natureza carnal, sem a regeneração do Espírito, a única coisa que somos capazes de fazer é “cumpri-la” de modo hipócrita, externo e ritualisticamente, mas isso não nos salva; na verdade nos condena ainda mais. Ora, a hipocrisia dos judeus, especialmente dos fariseus, consistia exatamente em pensar que a mera formalidade e externalidade da lei haveria de salvá-los.  Pelo contrário! Em certo sentido, à medida que conhecemos a lei, sem o poder do Espírito, experimentamos mais e mais morte. Em suma, à parte do poder transformador e capacitador do Espírito, na letra da lei só há morte espiritual e meras aparências ritualísticas. 

Por outro lado — e aqui está o cerne da passagem —  essa mesma letra da lei, quando aplicada ao nosso “homem interior” no poder e ministério do Espírito Santo, é o que nos vivifica: “(...) a tua palavra me vivifica” (Salmo 119.50). É a palavra (os escritos/letras) de Deus que nos dá vida espiritual (1 Pedro 1.23), que nos santifica (João 17.17) e nos concede verdadeiras experiências espirituais (Salmo 119). A vivificação é a obra do Espírito Santo, realizada internamente, através da lei do Senhor, de tal maneira que um código escrito e meramente exterior nunca poderia realizar. Esse contraste entre gramma (letra ou código) e pneuma (o Espírito) resume, para Paulo, a diferença entre a antiga aliança (uma lei exterior) e a nova aliança (uma dádiva do Espírito). 

Dito isso, o que temos diante de nós neste texto de 2 Coríntios 3.6  não é o ensino de que existe uma separação bíblica entre doutrina e vida, teologia e piedade, conhecimento e espiritualidade. O assunto desse texto é a diferença entre antiga e nova aliança, referindo-se especialmente ao ministério do Espírito Santo. Esse texto é o ensino claro de que a nova aliança em Cristo é uma aplicação transformadora da lei de Deus em nosso coração, no homem interior, no espírito do eleito através da pessoa do Espírito Santo.

Por fim, é importante lembrar que a lei de Deus é pura, justa, perfeita, santa e espiritual. Isso significa que quanto mais espiritual alguém se julga ser ou quando mais inspirado e cheio do Espírito Santo alguém pensa que é, mais amor e paixão pelas Escrituras Sagradas ele deverá ter, mais aplicado a teologia e ao conhecimento de Deus ele precisa se tornar. A maior evidência da operação do Espírito de Deus no coração de um convertido não é o quão estranho ele vive, o quanto ele cai, rola, pula, grita, o quanto ele fala palavras sem sentido ou tem arrepios nos cultos, mas o quando a lei de Deus está na sua mente e em seu coração, gravada em suas afeições, dominando seus pensamentos e desejos internos.  

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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