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Como interpretar o “Não julgueis” de Mateus 7.1?


Por: Fernando Razente
Data: 07/03/2022
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“Não julgueis, para que não sejais julgados.” (Mateus 7.1)

 

No texto de Mateus 7.1 Jesus diz: “Não julgueis, para que não sejais julgados.” Algumas pessoas ao lerem essa passagem se perguntam se esta não seria uma proibição absoluta de Jesus do juízo humano. Outros se questionam se aqui está sendo proibido aos cristãos avaliar e criticar somente o comportamento do próximo. Ainda há quem trave uma batalha mental com a dúvida de se um cristão estaria proibido de atuar em cargos jurídicos onde o juízo é necessário e faz parte do trabalho. Essas dúvidas são legítimas e precisam ser sanadas.

Por outro lado, é muito comum encontrar no meio evangélico moderno, pessoas usando essas famosas palavras de Jesus de maneiras propositalmente erradas. É fácil encontrar líderes religiosos que usam a tal passagem como um argumento em favor de que devemos aceitar tudo o que os outros dizem e fazem, sem pronunciarmos qualquer juízo de valor que seja contrário. Também sem dificuldade vemos membros de igrejas e pessoas que se dizem cristãs também usando essa passagem para pecar a vontade sem nenhuma censura, afinal “Só Deus pode me julgar.”, elas dizem. Mas, essas práticas são mesmo consequências legítimas do que Jesus ensinou nesse texto? Como devemos entender essa proibição de não julgar o próximo?

Acredito que o primeiro passo na interpretação bíblica é a leitura do contexto. Essa passagem se encontra dentro de um contexto maior e aqui está: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também. Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão. Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” (Mateus 7.1-6). É sempre importante lermos o contexto maior das passagens bíblicas e quando necessário até procurarmos correspondências em outras partes da Sagrada Escritura (Lucas 6. 37-41) para que tenhamos uma visão mais ampla, abrangente e correta do que está sendo transmitido como ensino.

Agora, a partir da leitura desse contexto (e de seu paralelo no texto de Lucas) podemos perceber quatro ensinamentos: 1)  Os dois textos ensinam que Jesus está anunciando uma regra de convívio social. A regra é simples: você não deve pensar que, ao usar um determinado critério (medida) de julgamento contra o seu próximo, este mesmo critério não será usado contra você. Certamente, a maneira como você analisa os outros será aplicada a você também. É isso o que Jesus está querendo ensinar ao dizer: “Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também” (v.2). Mas, então qual seria a medida ou a maneira correta?

2) É o que Jesus vai mostrar em seguida, primeiro proibindo a medida errada, isto é, o julgamento hipócrita: “Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita!” (v.3-5a). Esse tipo de julgamento consiste em vermos os defeitos dos outros sem olharmos os nossos; em queremos tirar o cisco do olho do próximo, quando há uma trave no nosso. Jesus está ensinando que a atitude de quem quer corrigir uma pessoa é se examinar primeiro de forma sincera e honesta e se submeter humildemente ao mesmo crivo que quer usar para medir e avaliar o procedimento e as palavras do próximo.

3) Uma vez que enxergamos com clareza, o próprio Jesus nos garante que seremos capazes de julgar com uma medida correta; ele quer que primeiro tiremos a trave do nosso olho e depois que tiremos argueiro do olho do nosso irmão: “Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão.” (v. 5). Perceba que é o próprio Jesus que nos leva a exercer o juízo: “verás claramente para tirar”; mas, agora de uma maneira correta, pois o que Jesus tenciona evitar não é o juízo em si, mas que alguém quase cego pela hipocrisia  — como alguém com um tronco de árvore no olho  — tente tirar um mero cisco no olho de outro; Jesus proíbe que alguém que não vê seus próprios pecados e que não se corrige tente corrigir o seu próximo.

4) Jesus ainda faz uma outra determinação — poucas vezes considerada na análise desse texto — que está no versículo final da passagem: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” (v.6). O curioso é que essa determinação só pode ser obedecida se, de fato, julgarmos. Não é possível obedecer essa ordem sem a capacidade de juízo. Afinal, como poderemos evitar dar  nossas coisas preciosas aos cães e aos porcos sem primeiro chegarmos a uma conclusão sobre quem se enquadra nesta categoria? Para que eu evite profanar as coisas de Deus preciso julgar a vida, o comportamento e as declarações das pessoas ao meu redor. Por isso, para que cumpramos essa ordem corretamente o que Jesus faz é primeiro estabelecer o juízo que deve ser evitado, para depois mostrar o caminho do juízo correto e santo que deve ser praticado.

Por fim, cabe uma importante nota conclusiva sobre a questão dos termos. O ato de “julgar” proibido por Jesus deve ser comparado com a prática condenatória, arrogante e carnal (proibida em Romanos 14.13 e Tiago 4.11-12) ou ao ato de determinar de forma precipitada e audaciosa a qualidade das pessoas (proibida em 1 Coríntios 4.5). Todavia, estes não são os únicos sentidos do termo “julgar” nas Escrituras. Sendo assim, não devemos tomar uma proibição de juízo em uma determinada passagem e absolutizar o seu sentido nas Escrituras. Por exemplo: “Julgar em Mateus 7.1 é o mesmo que em 1 Tess 5.21.” Se fizermos isso, colocaremos a Palavra de Deus em contradição.

Como devemos proceder então? Devido ao contexto, um termo  — embora possa ser o mesmo  — pode variar de sentido (forma de aplicação). Como assim? Por exemplo, o termo para “julgueis” em Mateus 7.1 é o verbo κρ?νω (krín?) — que no texto se encontra no presente imperativo ativo como κρ?νετε (krinete) — e, seu significado adequado é escolher separando. É um termo comum encontrado nos autores gregos do período antigo como nas obras do historiador grego Heródoto (484-425 a.C.), nos escritos do dramaturgo grego Ésquilo (525-456 a.C.), nos textos do discípulo de Sócrates, Xenofonte (430-350 a.C.) e nos livros do filósofo Platão (428-347 a.C.) como também nos autores bíblicos com esse mesmo significado: escolher separando.

Os usos de krín? carregam o mesmo significado de “separar” ou “distinguir”, normalmente se referindo ao sentido moral de fazer uma determinação, separando o certo do errado. Assim lemos no poeta Homero (928-898 a.C.): “separando [julgando] o grão do joio” (Ilíada, v, 501). Mas, o que faz ser algo certo ou errado “separar” (julgar) o joio do trigo? Ora, se o contexto nos disser que essa separação foi movida por motivos de inveja, orgulho ou vaidade (primeiro sentido) é uma separação (um juízo) errada. Mas, se a separação foi movida por justiça, bondade e pureza (segundo sentido) é uma separação (um juízo) correta. O significado de separar (julgar) permanece o mesmo, como “escolher separando”, mas o contexto ou o propósito estabelece o sentido adequado (por ódio ou por bondade) de um termo. Isso nos ensina que não podemos tomar o termo “julgar” em um sentido sempre pejorativo ou negativo, especialmente quando o lemos nas Escrituras. Precisamos primeiro examinar seu contexto. Existem julgamentos que são errados e pecaminosos e são esses que Jesus nos proíbe de praticar. São os julgamentos feitos de maneira hipócrita, arrogante, desmedida e parcial. Deste tipo de juízo devemos nos abster conforme a passagem de Mateus 7.1-6.

Por outro lado, existem juízos necessários e imperativos que devem ser feitos com piedade, retidão, justiça, critério, amor ao próximo e humildade, pois julgar é parte essencial da vida cristã: “Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça.” (João 7.24); “Mas Pedro e João lhes responderam: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus” (Atos 4.19); “Não sabeis que havemos de julgar os próprios anjos? Quanto mais as coisas desta vida!” (1 Coríntios 6.3); “Falo como a criteriosos; julgai vós mesmos o que digo.” (1 Coríntios 10.15); “Julgai entre vós mesmos: é próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu?” (1 Coríntios 11.13); “Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem.” (1 Coríntios 14.29); “Portanto, julguei conveniente recomendar aos irmãos que me precedessem entre vós” (2 Coríntios 9.5); “Julguei, todavia, necessário mandar até vós Epafrodito” (Filipenses 2.25); “julgai todas as coisas, retende o que é bom” (1 Tessalonicenses 5.21).

Como confirmam os filósofos cristãos, julgar é uma necessidade axiológica da humanidade e faz parte da nossa imago Dei, pois se falamos que é errado julgar, não estamos também fazendo um julgamento? Não estamos condenando um comportamento e priorizando outro? Por isso, somos de forma inescapável chamados de maneira criacional a exercer o papel de juízes; mas que sejamos nesse dever movidos por amor pelas pessoas e zelo pela glória de Deus e não por hipocrisia. Que sejamos justos, imparciais, humildes e cônscios de nossas limitações e fraquezas nesse dever.

 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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