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Qual o significado de “outras línguas” em Atos 2?


Por: Fernando Razente
Data: 14/03/2022
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“Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.” (Atos 2.4) 

O teólogo e pastor americano John MacArthur, autor do pequeno manual Como estudar a Bíblia (1982), escreveu: “[...] a interpretação errada é a raiz de todos os problemas.” Certamente, você há de concordar que temos muitos problemas na família, na educação e na política causados por más interpretações das regras, das leis, dos deveres ou dos direitos. Porém, em nenhum outro lugar a interpretação errada causa tantos problemas, agravantes e estragos como na igreja.

A igreja cristã, de maneira geral, sofre com a perda da unidade, da pureza e até mesmo de seu propósito quando a interpretação dos textos bíblicos é proposital ou acidentalmente equivocada. Não tenho dúvidas de que um dos grandes problemas da igreja contemporânea é sua dificuldade em entender o texto de Atos 2 e seus correlatos temáticos (Atos 10.46; 19.6; 1 Co 12-14). Para alguns estudiosos, padres, pastores e membros — católicos (especialmente a ala carismática) e evangélicos (nas alas pentecostais e neopentecostais) — o sentido de “outras línguas” de Atos 2 é de uma linguagem sobrenatural e incompreensível por vias racionais.

Por ser uma linguagem com sons proferidos sem nenhuma conexão lógica e sem nenhum sinal inteligível, muitos a chamam de glossolalia: a capacidade de falar uma língua que o indivíduo crê ser divina, mas não tem sentido para o ser humano. É preciso ser justo e reconhecer com verdade que muitos carismáticos diferenciam o dom de línguas de Atos 2 com as línguas das demais passagens já citadas, especialmente em 1 Coríntios, como se em uma passagem, esse dom fosse de uma forma, e depois nas outras, de outra forma.

Meu interesse aqui é expor apenas o texto de Atos 2 e verificar se ele ensina, de fato, o dom de uma linguagem desconexa. Se se tratando de uma linguagem humana, é pouco provável que no mesmo livro e nas cartas paulinas esse dom apareça de forma diferente em sua própria natureza. Sobre o dom de línguas em Coríntios, sugiro a leitura do texto A Natureza da Glossolalia de Corinto: opções possíveis (1977), do teólogo e professor do Novo Testamento Vern Sheridan Poythress publicado no Westminster Theological Journal, (p. 130-135), também disponível no site monergismo.net.br na sessão Dons Espirituais.

Dito isso, vamos ao texto! O dom de línguas é citado pela primeira vez no Novo Testamento no livro de Marcos, escrito entre 50-70 d.C. No capítulo 16, Marcos registra que Jesus, ao ser ressuscitado, aparece a Maria Madalena, a dois discípulos e por fim a todos com uma ordem específica: evangelizem. Nesta ordem, Jesus também diz que alguns “sinais hão de acompanhar aqueles que creem: em meu nome” (v.17), como: 1) expelirão demônios; 2) falarão novas línguas; 3) pegarão em serpentes; 4) e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; 5) se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados.

Esses sinais ajudariam os discípulos naquela época a reconhecerem a ação do Espírito Santo na igreja, à medida que a obra da evangelização fosse avançando e a comunidade crescendo. Repare agora com atenção no segundo sinal: “falarão novas línguas”. O que seria esse falar em novas línguas? Uma ótima maneira de entendermos isso é recorrendo ao primeiro princípio de hermenêutica bíblica: a analogia da fé. Significa, em termos didáticos, que a Escritura interpreta a própria Escritura. Como os reformadores cunharam: Sacra Scriptura sui interpres [As Sagradas Escrituras são seu próprio intérprete].

Isso significa que nenhuma passagem das Escrituras pode ser interpretada de tal forma que o significado alcançado seja conflitante em relação ao ensino claramente exposto pela Bíblia em outras passagens. Ou seja, a interpretação não pode ser isolada, mas orgânica, em relação de coerência com os outros textos para que seja correta. Portanto, para que compreendamos uma passagem obscura, o princípio da analogia da fé como ferramenta de interpretação bíblica é fundamental. Para entender o sentido de “falarão novas línguas”, basta que procuremos em outras passagens bíblicas sua relação. Que passagem mais se aproxima da promessa de Jesus? Sem dúvida, o texto de Atos.

Conforme lemos em Atos dos Apóstolos —  escrito por volta de 60-70 d.C. pelo evangelista Lucas —  a narrativa começa com um prólogo dedicado a Teófilo, descrevendo os mesmos acontecimentos de Marcos 16, porém com novos detalhes (Atos 1.1-4). No texto de Atos 1, Jesus ordenou aos seus discípulos que “não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, a qual, disse ele, de mim ouvistes. Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois desses dias.” (v.5).

Os discípulos, apreensivos, perguntaram a Jesus quando aconteceria a restauração de Israel, ao que Jesus respondeu não competir a eles esse conhecimento, mas que receberiam “poder, ao descer sobre vós, o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a judeus e Samaria até aos confins da terra.” (v.6-8) Note que a promessa do dom do Espírito estava intrinsecamente ligada com a tarefa da evangelização. Isso será importante à medida que avançamos na compreensão. Depois disso, Jesus ascendeu aos céus (v. 9-12) e os discípulos foram para Jerusalém e entraram em um cenáculo (um salão construído em cima do andar térreo de uma casa) e ali perseveravam em oração, aguardando a promessa do Pai (v. 13-14).

Tempos depois, escolheram Matias para substituir Judas no colégio apostólico (v.15-26) e naquela ocasião, estava sendo celebrado pelos judeus o Dia de Pentecostes, uma festa judaica comemorada cinquenta dias depois da Páscoa, também chamada de Festa da Colheita (a palavra pentecostes é grega e quer dizer “quinquagésimo [dia]”). Mas, quando a festa acabou, estavam todos os discípulos reunidos no mesmo local, talvez no mesmo cenáculo (Atos 2.1). E foi nessa hora que veio do céu um som, como um vento impetuoso (e não um vento impetuoso), e esse som encheu toda a casa onde estavam assentados (v.2). E apareceram — uma para cada discípulo — línguas com forma de fogo (e não de fogo) pousando sobre cada um deles (v.3)

Neste momento, a bíblia diz que todos ficaram cheios do Espírito Santo, como o Pai havia prometido que seriam batizados, e se cumpriu também aquilo que Jesus havia dito como marca de seus discípulos: eles passam a falar em outras línguas, segundo a capacitação sobrenatural do Espírito (v.4). Por ocasião da festa de Pentecostes, estavam habitando em Jerusalém povos de “todas as nações de baixo do céu” (v. 5). Era uma ocasião propícia para evangelizar, pois aquelas pessoas voltariam para seus países de origem levando a mensagem de Cristo.

Ao ouvirem aquelas vozes, a multidão se aproximou da casa onde estavam os discípulos com perplexidade. Por quê? O texto é claro: “porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua.” (v. 6). Em outras palavras, o texto ensina claramente que o dom de línguas de Atos 2 se tratava de outros idiomas; e a Bíblia ainda fala quais idiomas: dos partos, medos, elamitas, naturais da Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia, Frígia, Panfília, Egito, Líbia, Cirene, Creta, Arábia e Roma. Todos estavam atônitos e perplexos, pois ouviam falar em suas próprias línguas as grandezas de Deus (v.7-12).

Tanto a leitura literal do texto em português quanto a interpretação do termo grego usado por Lucas para “línguas” em Atos 2 (gl?ssais/γλ?σσαις) dão o sentido de um idioma, uma linguagem humana e compreensível ou “uma língua que não é nativa de quem fala, um dom ou faculdade para falar tal língua”, conforme o Léxico Analítico do Novo Testamento de William Mounce (1993, p. 157). Obviamente, haviam aqueles que não entendiam outros idiomas naquela ocasião e zombavam dizendo que os discípulos estavam embriagados (v. 13).

Mas, o fato é que aquela foi uma ótima ocasião para que Cristo fosse pregado através da manifestação do Espírito Santo na vida dos crentes no falar em outros idiomas; e foi isso o que Pedro fez. Pedro aproveitou a situação de atenção e juntamente com os onze (v.14), pregou um sermão maravilhoso que gerou quase 3 mil pessoas que aceitaram a palavra e foram batizados (v.14-41).

Concluímos que em nenhum momento de Atos 2 vemos uma manifestação de uma linguagem desconexa, irracional ou de anjos, incompreensível aos humanos. Na verdade, o texto mostra claramente que o dom do Espírito foi a concessão aos discípulos de falarem em idiomas humanos e comuns daquela época sem prévio preparo técnico, sem nenhum “curso básico” por exemplo, de egípcio clássico, para poderem evangelizar. Foi um dom divino, para que a mensagem de Cristo fosse propagada com mais eficiência e velocidade pelo mundo.

Portanto, usar esse texto como base para defender o exercício da glossolalia é o que chamamos na teologia de eisegese,  isto é, quando na interpretação bíblica os pontos de vista do leitor é que são incorporados ao texto ao invés do texto formar o ponto de vista do leitor. Não devemos impor aos textos sagrados nossas opiniões ou experiências místicas. Antes, precisamos perguntar ao texto se essas experiências são válidas, ordenadas ou se são frutos de nossa imaginação excêntrica.

 

?    Indicação de leitura: MACARTHUR, John. Como estudar a Bíblia: o que você precisa para ler e entender as Escrituras Sagradas. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2016.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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