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O fundo do poço


Por: Fernando Razente
Data: 22/01/2024
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Romanos 1.32 (ARA): “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.”

Na meditação da semana passada examinamos os versículos 28 a 31 de Romanos 1, onde o apóstolo Paulo declara que o mundo gentílico não aprovou (ο?κ ?δοκ?μασαν) o conhecimento de Deus revelado na consciência e na criação e, por isso, Deus os entregou – como forma de juízo temporal – a uma disposição mental reprovável (?δ?κιμον νο?ν ποιε?ν). Essa disposição mental reprovável, por reprovar o conhecimento de Deus, aprova tudo o que a Sua Santa Lei proíbe. Paulo então elabora uma lista (não exaustiva) de 21 pecados que caracterizavam aquela sociedade gentílica (bem como a nossa) entregue por Deus à sua própria mentalidade depravada.

Agora, no versículo 32, quero expor aos leitores duas coisas que Paulo nos informa sobre como os gentios impiedosos foram parar no fundo do poço moral: 1) que eles conhecem a sentença de Deus para os pecadores e, mesmo assim, 2) não só pecam, mas aprovam os que desta maneira vivem. Vejamos.

Em primeiro lugar, Paulo diz sobre os gentios que “(...) conhecendo (?πιγν?ντες/reconhecer) eles a sentença de Deus, de que são passíveis (?ξιοι/merecedor) de morte os que tais coisas praticam”.

Parece estranho que os gentios que não receberam a Lei de Deus de forma escrita dada aos judeus sejam conhecedores da sentença de Deus aos pecadores. Mas isso se explica pelo fato de que, quando Deus criou os seres humanos à Sua imagem e semelhança, dotou a todos de uma consciência moral e de uma capacidade de, pela natureza, reconhecer a Sua glória e sua justiça. Devido a queda no pecado, tal consciência humana perdeu seu referencial que é Deus, embora ainda reserve, pela graça ordinária, noções básicas e gerais de moral e justiça (Cf. Atos 28.4).

Assim, podemos parafrasear o que Paulo está dizendo no início do versículo 32 da seguinte maneira: os gentios, mesmo sem Lei, reconheciam que seus atos eram injustos e que eram merecedores de morte devido a consciência moral ainda residual neles após a queda no pecado.

Disso aprendemos que não importa quão longe ou primitiva esteja uma sociedade do verdadeiro Criador; por serem criaturas de Deus elas ainda são acusadas em suas consciências de que existe uma diferença entre certo e errado e um juiz (ainda que não saibam quem é esse Juiz, confundindo com elementos da natureza ou até mesmo com a ciência, a depender da sociedade) que pune o erro.

Mas aqui cabe um ponto de observação para que não confundamos essa consciência natural do pecado da qual Paulo fala que a humanidade sem Cristo tem, com a consciência espiritual do pecado que é a marca do arrependimento para a vida dos eleitos em Cristo.

Neste verso, Paulo não está tratando de um reconhecimento genuíno do pecado fundado na operação especial do Espírito Santo de convencimento para a salvação (João 16.8); pois, embora os gentios reconheçam ser um erro tais práticas, esse reconhecimento deles, como argumenta o comentarista bíblico John Murray, não cria e nem fomenta alguma disposição para essas pessoas se arrependerem e abandonarem o pecado. Antes, como a parte “b” do verso mostra, eles continuam na prática do pecado indo contra suas consciências!

Disso aprendemos mais uma lição: ter uma consciência natural do pecado é completamente diferente de receber pela graça do Santo Espírito uma consciência espiritual do horror do próprio pecado e, ao mesmo tempo, correr para Cristo através da fé, arrependido e produzindo frutos de uma renovação da mente. Talvez a história a seguir possa ilustrar bem essa situação que Paulo descreve.

O ano era 2016 em época de Páscoa, quando certo dia tive a oportunidade de visitar um jovem que, por furtar, foi preso. Ele cumpria pena em regime semi-aberto e, na ocasião, estava em sua casa. Eu sentei na sala com ele, abri a minha Bíblia, li alguns versos, expliquei o texto e orei com ele. Em seguida, mesmo sem saber nada sobre Deus ou se tinha fé n’Ele, esse jovem me confessou com vergonha que, de algum modo, reconhecia que o que tinha feito era errado, que era justo o castigo que estava sofrendo e que precisava pagar pelos seus atos.

Apesar disso, para minha tristeza, fiquei sabendo que futuramente esse jovem voltou a praticar os mesmos crimes. Perceba: ele conhecia a sentença?  Sim. Ele considerava o castigo justo? Sim. Mas isso não gerou nenhum fruto digno de arrependimento (Mt 3.8).

Portanto, devemos saber que esse reconhecimento dos gentios que Paulo descreve é apenas aquela admissão de erro e consciência de juízo fundada na certeza da quebra de uma lei natural que, embora os próprios gentios não saibam, foi inscrita por Deus em suas mentes, isto é, aquela “(...) norma da lei gravada no seu coração”, como Paulo declara no capítulo dois (Rm 2.15).

Pelo fato desse conhecimento e essa norma não ser capaz de produzir arrependimento (aquilo que só o Espírito pode fazer em nós por graça), os gentios voltam a praticar o que condenam e fazem pior ainda. Por isso, agora e em segundo lugar, Paulo continua o verso com um fato mais impressionante e paradoxal sobre a consciência humana caída em pecado.

O apóstolo diz que, mesmo sabendo da sentença digna de morte para tais práticas impiedosas, os gentios não são tomados de pavor ou temor. Antes, eles se lançam contra as suas consciências e “fazem” (parte b do verso) tais coisas contra a própria consciência, procurando calar este juiz interno em suas mentes, rejeitando todos os meios de preservação natural que Deus lhes proporcionou! Mas não para por aí. Na última parte do verso (parte c), Paulo ainda escreve que eles “(...) não somente as fazem, mas também aprovam (συνευδοκο?σιν/concordam, se sentem satisfeitos com) os que assim procedem.”

Em outras palavras, os homens sem Cristo, embora tenham certa consciência do erro e embora saibam que o pecado e os crimes que cometem merecem punição, ainda assim se lançam conscientemente no lamaçal da impiedade, praticando aquilo que sabem ser abominável e ainda, muitas vezes, no degrau mais baixo da miséria espiritual — no fundo do poço moral — acabam concordando e se sentindo satisfeitos com outros praticando as mesmas coisas!

Que situação degradante, paradoxal e confusa é a do homem pecador! Que contradição ambulante é o ser humano sem Cristo! Tal era a situação dos gentios e tal é a nossa como humanidade caída sem o genuíno conhecimento de Deus ainda hoje!

Como João Calvino observou: “(...) é o ápice de todos os males, quando o pecador está tão desprovido de vergonha, que fica satisfeito com seus próprios vícios e não os suporta para ser reprovado, e também os valoriza nos outros por seu consentimento e aprovação.”

Murray também fez um comentário cirúrgico, dizendo que tal atitude degradante revela que, na humanidade sem Cristo, há uma mescla de ódio ao próximo tão grande quanto a si mesmos, e por isso, eles aprovam em seus amigos e companheiros o que sabem, por experiência própria, ser algo digno de condenação.

Aqui vai uma ilustração desse segundo ponto. Pense em um grupo de amigos da faculdade, em que, neste grupo há um jovem moralmente mais sensível que os demais. Esse grupo tem o costume de se encontrar para ir em algumas festas. Em uma destas festas, os amigos mais perversos, mesmo cônscios dos erros próprios, destruídos e esmagados pelas consequências de seus pecados, descontam suas mágoas na imoderação do álcool, no uso de drogas e nos prazeres carnais.

Cada um ia se afundando no lamaçal do pecado ainda mais, mesmo sabendo que só iriam piorar a situação. Todavia, eles não se satisfazem e nem se tranquilizam apenas com as suas próprias vidas devastadas; seus olhos estão cheios de malícia, fixos naquele jovem moralmente sensível, que evita os excessos da festa, pois possui maior noção de erro e seus perigos.

Os maliciosos então insistem que o jovem se una a eles em direção ao fundo do poço da iniquidade, até que conseguem; quando observam o jovem jogado no chão do banheiro da festa, sujo de urina e vômito, chorando de tristeza; quando percebem que todos já estão fundo do poço, finalmente se sentem satisfeitos (συνευδοκο?σιν)! É isso que significa fazer o mal, mesmo sabendo ser errado, e aprová-lo nos outros.

Essa dinâmica é a dinâmica do coração pecador sem Cristo: destruir a si mesmo e aos outros, condenar o que pratica e praticar o que condena; odiar a santidade e satisfazer-se na iniquidade; reprovar a Deus e aprovar o pecado; rejeitar o manancial de águas vivas e mergulhar no fundo do poço excremental. Evidentemente que essa dinâmica a longo prazo e em grande escala cria uma sociedade enorme de delinquentes e marginais que se destroem mutuamente.

Como escreveu o teólogo C. E. B. Cranfield, “(...) os que aplaudem e encorajam as ações perversas de outros contribuem deliberadamente para o estabelecimento da opinião pública favorável ao vício e, com isso, promovem a corrupção de multidão inumerável.”

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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