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O escravo


Por: Fernando Razente
Data: 02/05/2022
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Rm 1.1(b): “servo…”

À luz da história de Paulo, vemos agora no termo “servo” da parte “b” do verso 1, a profunda e radical mudança de identidade que ele sofreu. Essa nova identidade é a primeira credencial de Paulo a ser apresentada na sua epístola. Como escreveu o teólogo calvinista John Murray (1898-1975): “Aos crentes de Roma, Paulo recomendava a si mesmo como servo de Cristo Jesus.” (2003. p. 30). É muito importante notar que Paulo apresenta sua identidade cristã primeiro de maneira geral aqui nessa palavra “servo”, para em seguida, transitar para o particular, a respeito do seu chamado e separação (o que veremos nos próximos artigos). No geral, Paulo se apresenta como um servo. “Paulo, servo…” (Rm 1.1).

Murray defende que “Das páginas do Antigo Testamento devemos extrair o significado de servo. Abraão (Gn 26.24; Sl 105.6, 42), Moisés (Nm 12.7,8; Dt 34.5; Js 1.1,2,7; Sl 105.26), Davi (2 Sm 7.5; Is 37.35), Isaías (Is 20.3) e os profetas (Am 3.7; Zc 1.6) eram servos do Senhor.” (p. 30). Isso revela que Paulo não exitava em atribuir a Cristo a posição dada ao “Senhor” no AT. Por outro lado, o termo servo, na carta de Paulo escrita originalmente em grego popular [koiné], toma contornos gramáticos, históricos e teológicos mais dramáticos e com profundas implicações.

Gramaticalmente, servo no original grego é doulos [δο?λος] que significa literalmente “escravo” e no uso do autor se encontra como um substantivo masculino. Neste sentido, teríamos Paulo apresentando-se substancialmente ou qualitativamente como alguém submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade. Isso é importante destacar porque o fato do termo doulos se encontrar no uso como substantivo nos mostra que Paulo não se via como um escravo acidentalmente ou algo com o que ele lutava pra não se tornar, mas como parte constitutiva de sua essência ou identidade espiritual.

É verdade que alguns comentaristas acreditam que o conceito escravo geralmente associado com o serviço involuntário, sujeição forçada e tratamento agressivo “[...] não é o melhor equivalente inglês [e portugês] nesse contexto.” (HENDRIKSEN, 2001. p. 52). Contudo, precisamos entender o termo teológica e analogamente, de maneira bem cuidadosa, até porque nem todo escravo no Império Romano vivia numa condição degradante. O escravo, diz Kenner [...] de um cidadão de alta posição social tinha mais status, autoridade e liberdade que um cidadão livre comum. Os escravos do imperador estavam entre as pessoas de posição social mais elevada em todo império” (2017, p. 508), mas, obviamente, eram uma exceção. O termo servo preferido por alguns nem sempre expressa a profundidade da relação entre o crente e Deus como o termo escravo é capaz; e por isso alguns teólogos, como R. C. Sproul (1939-2017), não ficaram satisfeitos com essa tradução, preferindo mesmo a tradução “escravo” para doulos (SPROUL, 2011. p. 12).

Teologicamente o termo doulos pode denotar pelo menos duas coisas: 1) um senso de insignificância pessoal, marca de todo servo de Deus (cf. Lc 17.10; Jo 1.27) e 2) alguém sem o mínimo direito próprio, alguém que foi comprado para pertencer a outro, situação de todo aquele que professa Cristo como Senhor de sua vida (Cf. 1 Co 6.20). Além dos contornos gramaticais e teológicos de Paulo — que condicionam a compreensão do termo —, é importante lembrar o contexto histórico-cultural do autor. Paulo estava imerso no antigo mundo greco-romano. E o que esse mundo pensava sobre a escravidão fiísica, figura da qual Paulo toma emprestada para sua autoidentificaçao espiritual?

Segundo historiadores, a sociedade greco-romana daquela época era socialmente dividida, sendo que a última e mais vil classe era exatamente a dos escravos. Pesquisadores também mostram que na época de Paulo havia em todo o Império Romano cerca de 100 milhões de escravos, uma ocupação comum. O escravo naquele mundo antigo era visto como propriedade, uma ferramenta viva, ou como “posses humanas”, conforme escreveu o filósofo romano Sêneca (c. 04 a.C-65 d.C.) em sua obra Sobre a Clemência (I. 18, 1). Outro autor romano que viveu naquele mundo antigo foi o jurista Gaio (130-180 d.C.) que em sua famosa obra Institutiones (161 d.C.) escreveu que os escravos eram aqueles que deveriam “[...] estar submetidos ao poder de seus amos. Esta espécie de domínio já é consagrada no direito dos povos, pois podemos observar que, de um modo geral, em todos os povos, o amo tem sobre os escravos poder de vida e morte…” (Instituições, I, 52/3).

Por fim, ainda nos lembra o teólogo Francis Schaeffer (1912-1984), em seu livro A Obra Consumada de Cristo, que os escravos da época também carregavam em seus pescoços pesadas argolas de ferro com o nome de seu senhor para identificação pública (2003. p. 14). Portanto, sintetizando o contexto gramatical, teológico e histórico de Paulo, podemos assumir que quando o mesmo se identificou na sua epístola como um “escravo”, ele intencionou proclamar aos seus destinatários que sua identidade era, em essência, nada mais nada menos que um criado resgatado, colocado para servir ao seu Senhor em plena submissão; e ao escrever sua epístola, ele estava servindo. Essa é a maneira como os cristãos de Roma deveriam imaginar Paulo ao lerem sua carta. A pergunta é: qual é o Senhor de Paulo? É isso que veremos no próximo texto, se Deus permitir.

Até a próxima!

Kyrios Iesous

 

 

 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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