A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Autoconsiderações hipócritas


Por: Fernando Razente
Data: 19/08/2024
  • Compartilhar:

Romanos 2.17-23 (ARA): “17 Se, porém, tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em Deus; 18 que conheces a sua vontade e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído na lei; 19 que estás persuadido de que és guia dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, 20 instrutor de ignorantes, mestre de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade; 21 tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? 22 Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os templos? 23 Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?”

No texto da semana passada meditamos a respeito do julgamento que Deus fará por meio de Jesus Cristo sobre os segredos dos corações humanos (Cf. Rm 2.16). E, embora seja verdade que o v. 16 se refira especialmente aos gentios dado o contexto, não é apenas a eles que a situação do juízo de Cristo se aplica, pois como as demais Escrituras Sagradas nos ensinam, todos os homens comparecerão no tribunal de Cristo (Cf. 2 Cor 5.10) quando o Senhor e Supremo Juiz trará à plena luz os desígnios dos corações, quer dos judeus, quer dos gentios (Cf. 1 Cor 4.15). No entanto, o capítulo dois segue um objetivo específico e faz-nos bem segui-lo para compreensão da intenção do autor sagrado.

Percebemos que depois de falar dos gentios do v. 12 ao v. 16, Paulo – agora do v. 17 ao v. 24 – no dizer de Calvino “(...) retorna aos judeus; e para que ele pudesse, com maior força, derrotar sua grande vaidade, ele lhes concede todos aqueles privilégios.” Ou seja, Paulo a partir do v. 17 se dirige novamente ao grupo dos judeus a fim de mostrar, mais uma vez, a indesculpabilidade e hipocrisia do povo da aliança à luz de seus enormes privilégios pactuais concedidos por Deus. O argumento paulino aqui é muito semelhante ao que usou no início do capítulo dois. Consiste em dizer que, embora os judeus tenham sido ricamente abençoados com a legislação, o culto, as promessas, as alianças (Cf. Rm 9.4-5) sendo escolhidos dentre todas as nações (Cf. Dt 7. 6-8), os mesmos não fizeram jus a essa graça, vivendo hipocritamente e, assim como os gentios, estão encerrados na desobediência (Cf. Rm 11.32) carecendo de um Redentor que os livre de tal situação. O tema central da porção bíblica de hoje é a demonstração da hipocrisia do povo da aliança.

Paulo dirige-se retóricamente ao seu alvo: o “tu” que “tens por sobrenome judeu” (v. 17) A expressão sobrenome (?πονομ?ζ?/eponomaz? = verbo no PIM/P-2S, cujo uso é “imponho um nome”), relacionada ao termo “judeu” refere-se à autoidentificação de nacionalidade e a ligação de homens e mulheres com a etnia judaica daquela época. Poranto, ter por “sobrenome judeu” significa considerar-se com orgulho um judeu de sangue, de línhagem pura, de tribo histórica e, acima de tudo, de religião e credo. Embora conhecidos como hebreus ou israelitas em determinadas épocas, foi o termo “judeu”, de fato, que se tornou mais popular na história. É a esse indivíduo que Paulo se dirige novamente (o termo já havia aparecido três vezes na carta, em Rm 1.16 e  2.9-10).

Em seguida, Paulo menciona algumas das melhores qualificações externas que, ao que tudo indica, eram consideradas por esse indivíduo judeu como suas grandes marcas. Segundo o apóstolo Paulo, o “tu” que tem por “sobrenome judeu” é aquele que “repousa na lei” e que “glorias em Deus” (v. 17), que “conheces a sua vontade” e ainda que “aprova as coisas excelentes”, “sendo instruído na lei” (v. 18). Além desses destacados atributos, Paulo ainda inclui que o judeu era alguém “persuadido de que és guia de cegos” e também “luz dos que se encontram em trevas” (v. 19), sendo “instrutor de ignorantes”, “mestre de crianças”, e que tinha “na lei a forma da sabedoria e da verdade.” (v. 20). São ao todo 10 qualificações das mais nobres que uma pessoa pode obter.

Lembremo-nos que Paulo não elenca tais qualificações a fim de elogiar o comportamento de certos judeus, mas apenas para usar essas autoconsiderações em seu argumento a fim de desmascarar a crônica hipocrisia. Afinal, uma vez que os judeus assim se consideravam, seria de se esperar que uma vida de piedade acompanharia todas essas virtudes e qualidades externas. Porém, como Paulo demonstrará nos versículos seguintes (v. 21-23), a partir de perguntas retóricas, tais virtudes eram apenas uma casca de santidade, porque o que tinha por “sobrenome judeu” era aquele que hipocritamente praticava as próprias coisas que condenava (Cf. Rm 2.1.3).

Perceba agora que Paulo – através de suas perguntas – se concentra em atos externos de piedade, pois as ações do judeu hipócrita são mencionadas pelos termos “ensinas”, “pregas”, “dizes”, “abominas” e “te glorias”. Essa é a essência da hipocrisia, aparentar ser uma coisa através da externalidade, mas ser, na verdade, outra. São ao todo 5 perguntas retóricas, abarcando os pecados de falsidade, roubo, adultério, idolatria e desonra, todos encapsulados na hipocrisia religiosa.

Segundo Paulo, o judeu era um (1) falso, pois gostava de ensinar aos outros os caminhos de Deus, mas não ensinava estes mesmos caminhos a si mesmo: “tu, pois, que ensinas a outrem, não te ensinas a ti mesmo?”. (v. 21a). O judeu era um (2) roubador, pois pregava o oitavo mandamento (Cf. Êx 20.15) aos outros e exigia obediência integral, mas ele mesmo era um ladrão em várias situações: “Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas?” (v. 21b). O judeu era um (3) adúltero e imoral. Ele dizia aos outros que não se deve quebrar o sétimo mandamento (Cf. Êx 20.14), mas ele mesmo era um adúltero em várias situações: “Dizes que não se deve cometer adultério e o cometes?” (v. 22a). O judeu era um (4) idólatra. Ele abominava (βδελυσσ?μενος / bdelyssomenos = odiar, detestar, deprezar) os ídolos, isto é, as divindades pagãs, mas roubava os seus templos, aproveitando-se daquilo que dizia detestar: “Abominas os ídolos e lhes roubas os templos?” (v. 22b). O judeu (5) desonrava sua própria religião. Ele se gloriava por ter a revelação especial, isto é, a lei de Deus, mas desonrava o autor da lei através de suas transgressões: “Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (v. 23).  Em suma, o judeu tinha uma boa língua e um bom conhecimento, mas um terrível coração e péssimas ações.

Paulo, a partir destas perguntas retóricas, desmascara completamente aquela vã e falsa ostentação de santidade, e revela a grande hipocrisia religiosa dos judeus. O autor sagrado mostra com clareza que aquelas autoatribuições de conhecimento, instrução e sabedoria não era genuínas, pois não tinham efeitos práticos na própria vida do judeu orgulhoso. O tal, no fim das contas, cometia os mesmos pecados que proibia. Ensinava aos outros a lei, mas não aplicava a lei na sua própria vida. Ele repousava na lei, mas a lei não tinha lugar para repousar em seu coração. Ele gloriava-se em Deus, mas isso para se glorificar. Ele dizia conhecer a vontade do Senhor, mas suas obras diziam o contrário (Cf. Tt 1.16). Ele considerava-se sábio e instruído por ter aprendido e assentido intelectualmente com a doutrina do Senhor, mas desonrava ao Senhor transgredindo essa mesma doutrina. Ele se considerava uma luz e um instrutor aos que estavam nas trevas da ignorância, mas sua conduta ímpia transmitia mais trevas e confusão ainda. Ele pensava ser um grande mestre de criancinhas, ensinando-as a honrar pai e mãe, mas desonrava os seus próprios pais em nome de tradições humanas (Cf. Mt 15.1-7).

O judeu era alguém que por um lado, ensinava a piedade, falava sobre a necessidade de fidelidade conjugal, do respeito à propriedade alheia, da pureza religiosa e do apreço pelas Escrituras, mas que por outro lado era impiedoso, traía, roubava, cometia idolatria e ofendia o autor das Escrituras pelas suas próprias transgressões. O símbolo máximo desse tipo de judeu hipócrita na época de Paulo era o judeu fariseu (aliás, Paulo mesmo era um fariseu antes de ser convertido por Cristo). Eram judeus orgulhosos, que se preocupavam mais com a aparência de piedade do que com o poder dela, isto é, com a santidade de vida e integridade do coração (Cf. 2 Tim 3.5). Se gloriavam em suas posições, cargos e nacionalidade. Eram rápidos em atirar pedras nos adúlteros, condenavam em público qualquer tipo de roubo, demonstravam zelo pela pureza do culto e da vida. Porém, embora tivessem um aparente apreço pela lei do Senhor e por uma vida íntegra, era na verdade, um apreço hipócrita e fingido, como Jesus expôs em muitos de seus encontros com os fariseus. Por isso, o próprio Senhor Jesus Cristo alertou seus discípulos, referindo-se aos judeus escribas e fariseus, dizendo: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem.  (Mt 23.3).

Este, portanto, é o “tu”, do v. 17: um judeu, cheio de si, inflado por sua religiosidade, orgulhoso e presunsoço, mas completamente equivocado, externamente hipócrita e uma pedra de tropeço para a verdadeira religião (como veremos no próximo texto, na exposição do v. 24). Por fim, vamos agora às aplicações. O que podemos aprender com estes versículos hoje?

Em primeiro lugar, aprendemos que Deus reprova o mero conhecimento da lei e o uso dela separado de uma vida reta de santidade de coração. Calvino, nas Institutas (1541), defende que “(...) o evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração.” Portanto, ao afirmarmos que somos conhecedores da Palavra de Deus – como afirmavam os judeus orgulhosos –, vigiemos para que a nossa vida  interna e externa testifique a verdade de nossas palavras, para que nossa conduta religiosa adorne a doutrina do Salvador (Cf. Tt 2.10).

Em segundo lugar, aprendamos que todos nós somos naturalmente hipócritas até que a graça nos transforme e nos capacite a abandonar a velha natureza dia após dia. Não são apenas os judeus que tinham tal condição de coração, que deturparam a verdadeira religião e viviam de forma hipócrita. Todos nós, inclusive cristãos, somos em algum nível, hipócritas. Não somos capazes de cumprir cabalmente a lei. Falhamos aqui e acolá em uma ou outra norma da Palavra de Deus. Exigimos dos outros aquilo que temos muita dificuldade em aprender e cumprir. Por isso, precisamos nos arrepender continuamente de nossa hipocrisia religiosa, e abandonar esse pecado tão nocivo à fé cristã.

Em terceiro lugar, aprendamos que mais importante que uma aparência de piedade, é a integridade de coração. Por isso, não nos impressionemos com qualificações externas mais do que disposições piedosas e internas. Antes de nos preocuparmos com uma vida pública de santidade, verifiquemos o nosso coração, suas motivações e seus pensamentos privados, mesmo que em nossos lábios esteja a lei de Deus. Afinal, podemos ser como aqueles que Jesus confrontou: “Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: ‘Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.’” (Mt 15.7-8). Cuidemos para que o nosso coração não nos engane, afastando-se do Senhor enquanto nossos lábios o professam hipocritamente.

Em quarto lugar, aprendamos que conhecimento da lei e expressão externa de piedade não é sinônimo de coração salvo e regenerado pela graça. Infelizmente, é possível que pessoas que tenham muito conhecimento da vontade do Senhor, nunca tenham conhecido de fato o Senhor. Como o tal judeu, é possível que indivíduos sejam eruditos na lei, mestres e doutores em teologia, mas que ainda não tenham sido, de fato, salvos. É impressionante pensar que uma pessoa pode se considerar como alguém que repousa na bendita lei de Deus, que se gloria em Deus, que conhece a sua vontade, que aprova as coisas excelentes, que pensa ser instruído na lei, que se considera um guia de cegos e luz dos que se encontram em trevas e instrutor de ignorantes, e respeitado como mestre de crianças, considerando como sabedoria e verdade somente aquilo que está de acordo com a Palavra, mas ainda assim, com todas essas autoconsiderações de piedade, não ser uma pessoa genuinamente salva. Portanto, sejamos cautelosos em julgar apressadamente as nossas próprias marcas de salvação.

Em quinto e último lugar, saibamos de que apesar de nossa falsa religiosidade, hipocrisia, orgulho e vaidade que ofendem a Deus e nos trazem justa condenação, o Salvador Jesus Cristo se entregou pelos pecadores. Cristo viveu debaixo da lei e cumpriu com suas exigências de forma perfeita e integral. Ele é aquele de quem todas as qualificações de Romanos 2.17-20 se aplicam perfeitamente. E, por sua perfeição de vida, o Senhor Jesus conquistou para os orgulhosos e hipócritas que se arrependem e creem N’Ele de coração uma justiça perfeita, a fim de serem aceitos e justificados pelo Pai. Por outro lado, foi Jesus quem levou sobre si os pecados de hipocrisia e de orgulho religioso de todos os seus eleitos. Ele consumiu esses pecados debaixo da ira santa de Deus enquanto esteve pregado no madeiro. Na cruz, o Senhor expiou definitivamente os pecados daqueles que, uma vez foram hipócritas e moralistas, mas que agora N’Ele crêem e se arrependem, como fizera Paulo, um orgulhoso fariseu antes de conhecer a graça. Por isso, é certo que Jesus Cristo é o salvador do religioso moralista, tanto quanto o é do incrédulo depravado!

Amém.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.