Liberdade intelectual
“[a liberdade] consiste na capacidade de o homem entrar na relação autêntica com o ser, de experimentar a veracidade de sua forma essencial, de justificar o sentido do seu valor e de o deixar penetrar na sua própria vida.”
— Romano Guardini (1985-1968), professor, sacerdote católico e escritor.
Dias atrás um querido amigo e colega professor, após ler um de meus últimos artigos, fez o curioso comentário: “Gostaria de ter essa liberdade intelectual que você possui.” Eu, até então, nunca tinha refletido sobre o que seria uma liberdade intelectual essencialmente. Tenho mesmo tal liberdade? Devo começar, na verdade, por outra pergunta: Sei o que é a liberdade de um ponto de vista filosófico? Sei como precisar liberdade intelectual? O que o leitor observará, em seguida, são as minhas respostas para cada uma destas espinhosas questões.
Penso, de modo semelhante ao que defendeu o teólogo e professor Romano Guardini em sua obra Liberdade, Graça e Destino (1958), que a liberdade assenta-se em uma realidade anterior a ela mesma, isto é, na realidade ontológica do ser, do “eu” humano nas suas qualidades inerentes e específicas de pessoa, em distinção absoluta com qualquer outro ente existente. Isso significa que o primeiríssimo elemento a ser considerado na questão da natureza da liberdade é o que é o ser (ontos), já que é do ser que o ato livre procede. Nas palavras de Guardini: “Quem traz consigo originariamente o caráter da liberdade é o homem enquanto pessoa, quer dizer, o homem que pertence a si mesmo.” (2023, p. 20).
A maneira pela qual a pessoa realiza o seu ser — e como se compreende enquanto pessoa no mundo — é através do ato livre. Todavia, o caminho para o ato livre lança sobre a pessoa do ser o peso da escolha diante das possibilidades no horizonte temporal do indivíduo, bem como o fardo das responsabilidades e das consequências anexadas inerentemente à escolha.
Da liberdade não se separará a responsabilidade absoluta da escolha subjetiva. Não podemos abstrair uma da outra — a não ser, evidentemente, em um exercício meramente teorético. O indivíduo pode genuinamente dizer: “Sou livre. Sou capaz de produzir fatos ‘sem ser movido por nenhuma outra causa’, de forma absolutamente original.”[1] (2023, p. 23). No entanto, a plena realização de seu ato livre só se efetivará na medida em que absorva o peso da sua decisão e das consequências. Como escreveu Guardini: “Não tenho de aguentar apenas as consequências da ação, como em tudo que faço; tenho de responder também pelo próprio fato de o ter produzido.” (2023, p. 23).
Agora, note que não estou falando de nossas responsabilidades externas ou, numa outra forma de colocar, jurídicas, como se normas, leis e padrões historicamente construídos tivessem tanta importância nesta questão da liberdade; antes, eu falo das responsabilidades com o que faço de mim mesmo com as ações, com aquilo que afeta “o âmago do meu ser” (2023, p. 23), ainda que não haja nenhum juíz da Suprema Corte para me julgar. É sobre mim, sobre o peso da decisão em minha consciência, como brilhantemente demonstrou o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) em seu romance Crime e Castigo (1866). Em outras palavras, esteja eu ou não diante de um tribunal, o peso da ação recai definitivamente sobre o meu “eu”.
Disto concluo que a verdadeira liberdade intelectual — ou melhor, o genuíno professor, escritor e intelectual livre, é aquele que pensa e comunica o que pensa consciente do peso de suas decisões intelectuais e de suas palavras de argumentação ao defender uma ideia, sustentando-a com o seu ser. Logo, o intelectual que evita as consequências de seus pensamentos pelo medo da censura de outros já se tornou refém das circunstâncias, de modo que, em seu pensamento (e consequentemente em sua ação) já não resta nada que possamos chamar verdadeiramente de livre.
Não pode haver liberdade intelectual onde a ditadura da conveniência social alcança soberania nem onde o ser pretende separar suas ações das consequências. E, como demonstrei, a ausência da liberdade impede a plena realização do ser enquanto pessoa, de modo que servos da conveniência social e indivíduos irresponsáveis estão em conflito com sua própria natureza humana.
Ser livre, creio eu, não é dizer o que pensa, apenas e, muito menos, dizer o que a maioria gostaria que você dissesse. Antes, é assumir no âmago de seu ser e na vida pública a responsabilidade de agir diante das possibilidades e enfrentar conscientemente as consequências da ação, como no exemplo de Sócrates, que corajosamente enfrentou o júri ateniense após ser acusado por Meleto, Lícon e Anito de que suas ideias estavam seduzindo a juventude e abalando o status quo daquela sociedade antiga.
Sócrates abriu-se absolutamente para a liberdade natural ao realizar-se como pessoa na tomada individual de decisão e ao abraçar plenamente suas consequências, mesmo sendo umas das mais dolorosas (morreu envenenado). Eu poderia também citar o exemplo do jovem Estevão, do apóstolo Paulo, Justino e de todos os santos mártires da igreja cristã que foram até o martírio por suas ideias na plena realização do ser. Aí estão os exemplos de liberdade intelectual! Do contrário, estaríamos falando da classe de indivíduos subservientes às conveniências institucionais e culturais, que de intelectualmente livres e plenamente realizados, não possuem nada. E, infelizmente, a massa escolar, universitária e também eclesiástica faz parte desta última classe.
[1]Para um dos melhores contrapontos dessa ideia de Guardini ver a teoria girardiana do Desejo Mimético, elaborada pelo filósofo francês René Girard (1923-2015) e desenvolvida pelo historiador americano Richard J. Golsan. Os autores defendem que no ramo do conhecimento ou em qualquer outro, desejamos ou cobiçamos uma coisa “(…) não por aquilo que é, e sim porque imito o desejo de alguém que opte por tomar como modelo. Essa pessoa — seja real ou imaginária, emprestada ou histórica — se converte em mediador do meu desejo, e então me envolve numa relação essencialmente triangular.” (Cf. GOLSAN, Richard. J. Mito e Teoria Mimética: uma introdução ao pensamento girardiano, 2015).
Fernando Razente
Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.