Bibliofilia
“La lecture est une amitié [A leitura é uma amizade].”
— Marcel Proust (1871-1922)
“Ao ler a grande literatura, eu me torno mil homens e, mesmo assim, continuo a ser eu mesmo.”
— C. S. Lewis (1898-1963)
“Quando o texto de uma grande obra ocupa sua mente por inteiro, quando o leitor fica absolutamente absorvido pelo que está lendo, o mundo do texto torna-se o mundo do leitor.”
— James W. Sire (1933-2018)
Os livros, nossos amigos. Esse é o título da interessantíssima obra do ensaísta, bibliógrafo e editor mineiro Eduardo Frieiro (1989-1982), publicada pela primeira vez em 1941. No livro, Frieiro analisa desde aspectos gráficos dos livros (como a impressão), até assuntos específicos como os grandes leitores da história. O gosto pela leitura utilizada para o crescimento humano, a natureza dos clássicos, o que é uma vida intelectual, os inimigos dos livros (como as pragas), os cuidados e os remédios para prolongar a vida dos livros e até conselhos úteis para manutenção de uma biblioteca particular são abordados na obra de Frieiro.
Recebi o livro de presente, numa ocasião de visita ao amigo e professor Dr. Fábio Viana Ribeiro (Economia - UEM), também mineiro e que, em quesito de livros, o considero um verdadeiro bibliófilo (sugiro ao leitor que ouça o programa Bibliofonia, produzido na UEM FM 106.9, dirigido pelo Dr. Fábio). Aliás, foi ao chegar em casa e folhear um pouco do livro que li pela primeira vez esta palavra semanticamente tão adequada ao que se propõe significar: bibliofilia. Fui investigar. Descobri a definição que o professor e historiador português João José Alves Dias (1957-) em seu livro Iniciação à Bibliofilia (1994), dá ao termo bibliófilo: simplesmente "aquele que ama os livros".
Mas isso é generalizar demais (!), pois me parece que um bibliófilo é o leitor raro, do tipo que possui um amor por livros bem específico; um amor equilibrado, racional, com propósitos claros e definidos com o objeto de seu amor. Não é aquela experiência relativamente comum de passar um tempo com um livro qualquer, num bosque ou numa praia. Nem mesmo o desejo perverso e odioso de ler por status social. Os que leem por isso são meros diletantes literários, e estão sempre atrás dos últimos romances banais ou dos panfletos ideológicos que vencem o Prêmio Jabuti. O bibliófilo é mais que alguém que simplesmente gosta de ler livros da moda.
Por outro lado, o bibliófilo também não deve ser confundido com um exagerado bibliomaníaco, como o caso da personagem interpretada por Mel Gibson em A Teoria da Conspiração que sofria de uma forma de bibliomania induzida que o levava a comprar um exemplar de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger (1919-2010) toda a vez que saía do seu apartamento. Muito menos confundido com um bibliófago, o caso mais espantoso que é também o tema central da pintura Der Bücherwurm, do poeta Carl Spitzweg (1808-1885) feita em 1850, representando alguém que chegou ao ponto de se alimentar literalmente dos livros!
Não. A bibliofilia não consiste numa desordem obsessiva-compulsiva de recolha e colecionamento arbitrário de livros e mais livros, num divertimento literário por status ou num desejo gastronômico tão peculiar. Todas essas formas (diletantismo, bibliomania e bibliofagia) de afeição para com os livros são completamente desvirtuadas de ordem e propósito elevados. Não é aí que está o bom leitor.
O bom leitor/bibliófilo possui, ou antes é possuído, pela virtude da φιλ?α, isto é, o amor fraterno e afetuoso, cheio de equilíbrio moral, propósito metafísico e seriedade epistemológica, que considera carinhosa e gravemente a palavra escrita e impressa como uma ferramenta de acesso às expressões viscerais ou janelas do coração de uma pessoa e sua mente.
O bibliófilo deseja e ama ver um mundo novo e isso por meio de outros olhos; ele anseia, como disse o Prof. Lewis em seu epílogo de Um experimento em crítica literária (1961), “(...) imaginar com outras imaginações, sentir com outros corações, e com os nossos próprios também”. A leitura para qualquer legítimo bibliófilo, nas palavras de Proust, é como fazer uma amizade. E quem pode ser amigo ou ganhar um amigo sem antes ser capaz de emprestar seus olhos, ouvidos e coração para ver, ouvir e sentir a vida da perspectiva do outro?
Por isso, é verdadeiro quando se diz que o pathos do bom leitor pelo livro é sempre direcionado à capacidade de uma obra literária de o retirar de seu mundo minúsculo de interesses pessoais e o reportar para o “Universo ao lado”, como diria Sire; o universo da cosmovisão do autor, permeada de pressupostos vitais, de compromissos radicais com uma forma única de ver e experimentar a realidade.
Fernando Razente
Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.