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Para o que serve a História?


Por: Fernando Razente
Data: 28/08/2023
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"A vida humana sem o conhecimento da história não é nada além de uma infantilidade perpétua.”

Philip Melanchthon (1497-1560), teólogo, reformador e educador alemão.

Uma pergunta que alunos me fazem com frequência em sala de aula é: “Professor, para o que serve a disciplina de História?” Minha resposta é sempre a mesma: “A História serve à antropologia.” Ao responder tenho sempre em mente a antropologia em dois sentidos: o geral e o pessoal.

No sentido geral porque um dos propósitos da ciência História é entender o seu agente fundamental: o homem no tempo e no espaço, independente da época ou cultura. No sentido pessoal porque por fazermos parte da espécie humana, podemos usar a história para entender o nosso ‘eu’ particular e subjetivo dentro do sentido geral. Por hora, é neste segundo sentido que pretendo concentrar meu pensamento. A minha tese é simples: a ciência História nos ajuda na construção de uma antropologia pessoal.

Pode soar um pouco distante da realidade de um pesquisador acadêmico em meio a livros enormes numa biblioteca fechada para o mundo externo, mas é um fato que aprender história pressupõe aprender mais sobre a nossa espécie e, por consequência, a nós mesmos. Que estranho seria uma ciência que nos ajuda a entender tudo ao nosso redor enquanto nós mesmos permanecemos perdidos e obscurecidos em nosso próprio intelecto.

Não foi sem razão que o historiador Marc Bloch (1886-1944), em seu célebre livro Apologia da História (1949) sentiu a necessidade de defender que “[...] uma ciência sempre parecerá ter algo de incompleto se não nos ajudar a viver melhor”. Por isso, acredito que a ciência História enquanto não for entendida como uma serva preciosa para a antropologia pessoal permanece longe de atualizar todo o seu potencial.

Indo além, outra tese não minha, mais conhecida e consensual é: a antropologia pessoal é fundamental para alcançar aquilo que julgamos ser uma vida feliz. Colocando em outras palavras, todos nós concordamos que um conhecimento adequado de si mesmo (antropologia pessoal) pode contribuir para o caminho de uma vida feliz e que, por outro lado, a carência desse conhecimento adequado de si mesmo produz imperfeições no juízo humano e escolhas erradas, nos afastando de uma vida legitimamente feliz.

Mas como obter um conhecimento seguro e legítimo de nós mesmos sem a compreensão das forças históricas que nos formam e nos caracterizam? Simplesmente não é possível. Por isso, entendo que somente com o auxílio da ciência História é que podemos conhecer grande parte de nós mesmos a partir da análise das condições espirituais e materiais que historicamente nos influenciam através do espaço e do tempo.

Assim, a história se une à antropologia pessoal que é fundamental para a vida feliz porque por meio da história passamos a conhecer como os atos externos de décadas e até séculos podem ainda influenciar e operar com força determinante grande parte de nosso ‘eu’ no presente. Logo, é a ciência História que servindo a antropologia pessoal torna o conhecimento de grande parte do ‘eu’ algo possível e científico, aproximando o homem de sua vida feliz.

Enfatizo a noção de ‘grande parte’ porque nem tudo que nos constitui é histórico e temporal. Há aspectos em nós que são normativos, atávicos e inatos. Mas, por outro lado, uma grande maioria dos componentes daquilo que chamamos de ‘eu’ não são, de fato, de nós mesmos, nem normativo, atávico ou inato. Grande parte desse nosso ‘eu’ é produto de outras histórias. Quase tudo (e o ‘quase’ aqui é muito importante) daquilo que compõe o que chamamos de ‘eu’ é, de fato, produto histórico.

E o que faremos do conhecimento legítimo de grande parte de nós mesmos e a vida feliz que disso procede se não conhecermos cientificamente a natureza, origem e forma dessas histórias que nos modelam? Estaremos cegos para a nossa própria identidade. Precisamos admitir que cada ser humano é em parte um arcabouço de impressões e extensões do passado, atuando ali, em sua vida presente. Logo, as origens da maioria das coisas presentes no ser humano sempre se encontram em coisas do passado recente e do passado mais distante; e, se não compreendemos isso, comprometemos a consciência de nossa identidade, o conhecimento de nós mesmos e a vida feliz que almejamos.

Este é, penso eu, um dos mais profundos propósitos da disciplina da história: servir a uma antropologia pessoal que por sua vez, nos aproxima de uma vida feliz de autoexame. Eu mesmo, em minha profissão, tenho utilizado da ciência História com essa finalidade, isto é, contribuir com o conhecimento próprio a partir da interpretação histórica do contexto social em que estou inserido, e, assim, me aproximar de uma vida melhor, que ao meu ver, está na maturidade da autoconsciência.

O que é esta maturidade? É a virtude de conhecer suas limitações, influências e fraquezas, sendo franco e honesto consigo mesmo sobre as origens de muitas de suas ações, convicções e aspirações; essa é a tal vida feliz que atravessa o limbo da infantilidade perpétua da qual falava o educador Melanchthon (uma infantilidade que desconhece as origens de sua própria natureza).

É uma vida feliz porque é fruto de uma antropologia pessoal que se alimenta de uma análise séria e científica da história. Resumindo, o que tenho dito até aqui é: a história como ciência do homem no tempo e no espaço serve a antropologia no sentido pessoal que serve ao desejo humano de uma vida feliz que, por sua vez, consiste naquela maturidade do autoexame humilde e honesto sobre as verdadeiras (e não simuladas) origens daquilo que chamamos de ‘eu’.

É digno de nota que tal antropologia pessoal e a maturidade do autoexame só são possíveis na relação de dependência e união com uma outra fonte (ainda mais importante) de conhecimento: o teológico ou supra-histórico. Sobre isso, pretendo discorrer em breve.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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