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O mundus sensibilis de Humboldt


Por: Fernando Razente
Data: 16/11/2023
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Conhecido como “pai da biogeografia”, o prussiano Alexander von Humboldt (1769-1859) – nascido no pluriforme Século das Luzes – foi um explorador de renome que, em sua época, perdia em fama apenas para o estadista francês Napoleão Bonaparte (1769-1821). Seu irmão mais velho foi ninguém menos que o renomado linguista prussiano e fundador da Universidade de Berlim (Humboldt-Universität), Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand von Humboldt (1767-1835).

Alexander von Humboldt possuía um caráter polímata em seus interesses intelectuais, além de uma vasta e respeitável produtividade como pesquisador. Para se ter uma ideia da versatilidade do homem, enquanto explorador Humboldt – entre 1799 e 1804 – viajou extensivamente pelas Américas descrevendo-as biológica e geograficamente pela primeira vez de um ponto de vista científico moderno, contribuindo para conhecimentos da História Natural e da Geografia.

Enquanto escritor, foi ao mesmo tempo um dos grandes proponentes da filosofia romântica; influenciado pelo racionalismo francês e pelo idealismo filosófico alemão, sua erudição conjugada à imaginação era notável. É através de seus escritos e pesquisas, bem como de obras biográficas da historiografia (Cf. The Invention of Nature: Alexander von Humboldt's New World, de Andrea Wulf) que conhecemos a sua cosmovisão em particular, a qual pretendo apresentar resumidamente a seguir.

Comecemos pela primeira metade do século XIX – especificamente 1827-1828 – quando Humboldt realizou uma série de aulas na Universidade de Berlim, onde ressuscitou o uso da palavra “κ?σμος” (transl. kósmos = mundo), do grego antigo para expressar o resultado de sua busca por unificar diversos ramos do conhecimento científico e da cultura. Posteriormente, entre 1845 e 1862, as palestras tomaram a forma de um notável tratado sobre ciência e natureza, intitulado “Kosmos - Entwurf einer physischen Weltbeschreibung”.

Este trabalho de Humboldt – exposto já na fase madura de seu pensamento aos 76 anos –  expressava sua percepção holística do universo como uma entidade integrada que fundamentava sua cosmovisão. Essa percepção estava calcada na sua intuição básica da realidade concreta do mundo (um dos pilares de qualquer cosmovisão). Para um dos maiores filósofos da Alemanha no século XX Martin Heidegger (1889-1976), Alexander von Humboldt empregava o weltanschauung com referência ao mundus sensibilis [mundo sensível]. Tal termo expressa a compreensão de Humboldt (bem como de Goethe e até mesmo Kant) de uma “intuição de mundo no sentido de contemplação do mundo dada aos sentidos.” Tal intuição é o que caracteriza a pressuposição de cosmovisão de Humboldt e guia toda a sua reflexão subsequente.

Uma intuição é, resumidamente, o fenômeno da mente humana em chegar a algumas conclusões sem uma explicação consciente ou mesmo voluntária. Portanto, não é do interesse de Humboldt explicar como ele mesmo chegou à sua intuição, mas apenas explanar o conteúdo dela. Para Humboldt, sua intuição de mundo era formada por uma imagem mental advinda da apreciação ou contemplação da realidade mediada primordialmente pelos seus sentidos.

Tais sentidos o levaram a uma substituição da visão de um estado de desunião estanque entre o Céu (imaginação) e a Terra (ciência) por uma direção paralela; de uma divisão para uma unificação de todas as partes que compõem a realidade; um todo bem integrado, como vemos em sua obra Kosmos, cujo principal objetivo era fornecer uma representação da unidade no meio da complexidade da Natureza. Ou seja, na visão primordial de Humboldt a realidade fundamental é composta de duas partes: a espiritual (captada pela imaginação) e a material (captada pela ciência). Todavia, essas partes não estão desunidas e nem mesmo postas em um formato hierárquico (céu acima e terra abaixo). Na verdade, elas estão juntas de forma paralela numa unidade.

Por isso, para Humboldt, não deve haver uma dualidade estanque entre o céu e a terra; o homem não deve ser motivado a um olhar espiritual para cima e depois para baixo como se estivesse imerso junto aos fenômenos físicos no tempo e no espaço precisando se libertar deles; e, por outro lado, também não deve compreender a realidade física do mundo à parte de sua imaginação.

Em resumo, a intuição básica de Humboldt era que o mundo era constituído de maneira uniforme e recortá-lo em partes seria um abandono da visão integral e genuína; o ser humano não deve procurar uma descrição puramente científica de caráter empírico e nem uma experiência puramente estética de caráter sensorial e intuitivo.

O conhecimento adequado que integra de maneira coerente a estrutura do kosmos é tão somente uma impressão total dada aos sentidos que pode ser exposta pela linguagem ao exercer o papel de compensação ou união entre as relações da ciência e da imaginação. É agora importante mencionar o caráter prático de uma cosmovisão a despeito de suas descrições abstratas, pois em suas obras, Humboldt procurava dar a conhecer as suas descobertas científicas recorrendo ao desenho e a descrições que provocavam a imaginação! Tal é o impacto de uma cosmovisão na práxis de um pesquisador.

Cosmovisão não é algo simplesmente sobre o que cremos ser o fundamento da realidade, mas em como essa crença molda nossas percepções subsequentes em nossa vida, em nossas pesquisas, nossas produções e nossa prática diária de interação com o mundo ao redor.

Há muitos detalhes que não foram trabalhados neste breve artigo sobre a cosmovisão de Humboldt; mas basta destacar que, o elemento pressuposicional na cosmovisão de Humboldt se faz presente como um compromisso fundado numa intuição de uma realidade uniforme, uma impressão total e paralela daquilo que, erroneamente – diria Humboldt – observamos hierárquica e divisoriamente. Suas obras, seu estilo de vida e toda sua carreira expressam na prática esse compromisso basilar em sua cosmovisão.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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