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Sobre o benefício da leitura de livros antigos


Por: Fernando Razente
Data: 11/07/2023
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“O presente se tornará passado, e a autoridade evidente de suas ideias se desgastará.”

— Alister McGrath,

professor de Ciência e Religião na Universidade de Oxford.

Uma das minhas programações preferidas depois de uma longa e cansativa semana de aulas é aproveitar um sábado para ir até ao sebo de livros com minha esposa e filha e lá, passar algumas horas pesquisando, selecionando, lendo e pensando até o horário do café da tarde.

Em uma dessas ocasiões, me encontrava em um pequeno corredor de um sebo, quando puxei por curiosidade um livro já envelhecido do dramaturgo brasileiro Millôr Fernandes (1923-2012). Já havia lido algo de Millôr e tive curiosidade. Arbitrariamente, abri numa certa página em que Millôr versava sobre a literatura antiga: “Em ciência”, escreveu o autor, “leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos.”

Embora sendo um simpático (e leitor) da literatura antiga — apesar de toda dificuldade terminológica dentro da História para definir o que significa ‘antigo’ ou ‘clássico’ —, não creio que a literatura apenas por ser antiga deva ser entendida como bela, boa, verdadeira e por isso útil aos alunos e professores. Há muito de feio, imoral, falso e por isso inútil na literatura antiga. Assim como contemporaneidade não é sinônimo de qualidade na literatura, antiguidade também não é.

É fato ser preciso muita cautela enquanto leitor. Precisamos manter certo equilíbrio entre a disposição mental reacionária de um Pierre de Blois (1135-1203) — que devotava sua vida aos escritores antigos — e a mente progressista de um jornalista pós-moderno que se preocupa apenas com as  ‘últimas tendências da literatura’ e as considera as mais dignas de seu tempo e pensamento. E, até onde eu sei, a maioria dos leitores da atualidade se desequilibraram para o segundo caso.

Recentemente, conversando com um amigo e colega de profissão, pensávamos sobre o fato de muitos acadêmicos de História rejeitarem com tanta arrogância a leitura de autores antigos e suas obras clássicas como As Histórias (479 a.C.) de Heródoto (484-425 a.C.) ou a importantíssima obra Anais (117 d.C.) de Tácito (56-117 d.C.), dando preferência a qualquer literatura da área que se torna Best-Seller por um apelo popular momentâneo resultante do zeitgeist (como diria Hegel).

Por que há tanta tendência de ver a literatura contemporânea como mais digna de nosso tempo e de nosso esforço intelectual? Por que é cada vez mais raro encontrar um aluno lendo em primeira mão um texto de Platão enquanto é fácil ver um leitor de Karnal e Cortella? Por quê esse desprezo pelos escritos antigos e as ditas obras ‘clássicas’ do pensamento humano? Talvez, não seria esse vício literário fruto de um ‘esnobismo cronológico’? Sim, eu penso; e pretendo explicar como percorrendo rapidamente a experiência literária de C. S. Lewis com os antigos.

Já faz alguns dias que estou folheando uma das biografias mais bem embasadas (Publishers Weekly) do antigo professor de Oxford e autor do clássico As Crônicas de Nárnia, C. S. Lewis (1898-1963). A biografia foi o resultado das pesquisas do professor de Ciência e Religião de Oxford, Alister McGrath. O biógrafo nos conta que Lewis — assim como muitos leitores hoje em dia — acreditava que seus dias eram melhores que todos os outros, e as certezas: as mais certas!

Jack (apelido de Lewis) pensava que a escuridão e a ignorância ficaram definitivamente no passado com os antigos e que a sua época e ambiente intelectual vieram para ficar. Todavia, gradativamente Lewis foi abandonando essa percepção equivocada à medida que se encontrava e conversava com seu amigo Owen Barfield (1898-1997) que o levou a “duvidar dos que proclamavam a inevitável superioridade do presente em relação ao passado”.

Posteriormente, Lewis percebeu a beleza e os ensinos do passado e desenvolveu um amor profundo pela literatura antiga, abordando ela de maneira correta e se utilizando do “desafio implícito que [ela] impõe à suprema autoridade do presente”. Lewis se tornou num excepcional medievalista (Cf. Uma Imagem Descartada, 2015) e um professor-tutor de Literatura Inglesa em Oxford que incentivava seus alunos a lerem os antigos mais que suas próprias obras.

 Em 1944, Lewis escreveu um breve ensaio intitulado “On the Reading of Old Books" [Sobre a leitura de livros antigos], onde explica que existem certos benefícios ao leitor das obras antigas que as obras contemporâneas não podem proporcionar da mesma forma. O principal desses benefícios é o abandono do ‘esnobismo cronológico’.

Trata-se de pensar nas relevâncias da atualidade sem levar em consideração a ampla massa de acontecimentos históricos que nos falam das relevâncias do passado (hoje completamente irrelevantes). É a forma ingenua de ver o presente da literatura sem as lentes do senso temporal, ignorando a eventual caducidade que as certezas mais certas da atualidade estão sujeitas, assim como estavam as antigas certezas afundadas no esquecimento. Logo, ignorar que as obras literárias do passado (e suas ideias) já foram uma tendência tão forte ou esquecer-se que as tendências intelectuais do presente um dia também farão parte do passado nada atrativo é ser um esnobe do tipo cronológico.

Isso também nos ensina, como que por implicação que o clima cultural, sociológico e filosófico de nosso tempo literário não carrega consigo toda a autoridade do cosmos para dizer o que é certo ou errado. Havia muitas certezas e consensos no passado como existem no presente sobre o certo e o errado, mas que, com o teste do tempo, se desfizeram como gelo no sol ou foram radicalmente alteradas. Evidentemente, não estou dando margem para o relativismo moral, mas apenas apontando para o fato de que certezas não devem ser tidas como certas apenas porque são ‘as mais recentes’. Era a coisa ‘mais recente’ da Atenas Antiga (VI a.C.) uma democracia que excluía a participação feminina da política. Logo, como argumentava McGrath, a menos que a autoridade das ideias de uma época se fundamente unicamente na excelência intrínseca delas mesmas mais do que em sua mera posição cronológica, não há razão para crermos nela como uma verdade atemporal.

Concluindo, a leitura de livros antigos nos dá a necessária distância com o nosso presente para uma abordagem verdadeiramente crítica da literatura contemporânea e seu valor para a nossa educação. Ler livros antigos, diz McGrath analisando a visão de C. S. Lewis, nos concede “uma familiaridade com a literatura do passado [que] proporciona aos leitores um ponto de vista que lhes dá distanciamento crítico em relação à sua própria época”.

Só nos será possível olhar para o nosso presente literário de uma forma verdadeiramente crítica e ponderada ao reconhecer (ler!) que muitas ideias do passado também já foram o presente mais avançado de civilizações já mortas.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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