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Cosmovisão e educação: prolegômenos


Por: Fernando Razente
Data: 19/09/2023
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“Nunca houve uma ciência que não fosse fundada em pressuposições de natureza religiosa.”

– Herman Dooyeweerd (1894–1977),

professor de direito e jurisprudência na Universidade Livre de Amsterdã, de 1926 a 1965.

Conhecer para formar é o objetivo principal da educação, do berçário ao pós-doutorado. Nesse longo processo, todo professor tem como função máxima comunicar proposições corretas ou práticas adequadas de forma clara para que o aluno seja capaz de apreendê-las, interpretá-las e por fim, comunicá-las também. Mas tanto a atividade de comunicação professoral como a apreensão do conteúdo pelo aluno não são, de modo alguma, neutras.

A neutralidade da que falo é a do sujeito conhecedor. Nas ciências, trata-se da tese de uma objetividade pura no processo de conhecimento que traz, como consequência, o uso de uma linguagem compatível com a anulação do sujeito no processo de apreensão da realidade.[1] Essa ideia, muitas vezes alimentada por uma visão materialista da realidade,[2] ignora a presença e influência das pressuposições do sujeito na comunicação, assimilação, ordenamento intelectual e ação prática do conhecimento da realidade.

O filósofo americano e professor emérito do College of New Jersey, Roy A. Clouser (1937-) argumenta em sua obra O mito da neutralidade religiosa (1991), que nossas atividades teóricas no processo educativo são, na verdade, sempre precedidas por algo.[3] De maneira semelhante o filósofo da ciência Karl Popper em Conhecimento objetivo (1975) defende que todo “(...) crescimento de conhecimento consiste no aperfeiçoamento de um conhecimento existente que é mudado na esperança de se aproximar mais da verdade.”[4]

Em outras palavras, não comunicamos nem recebemos informações de maneira livre de experiências prévias e condicionantes. Existe sempre algo anterior ao nosso conhecimento; algo localizado em nossa constituição epistemológica. Não se trata de algo em sentido histórico (distancio-me aqui do historicismo), mas de algo em sentido ontológico-metafísico. Esse algo que precede nosso exercício intelectual é chamado por alguns filósofos de compromissos básicos, que tem a função de orientar o conhecimento posterior e conferir sentido a eles. Portanto, todo pensamento, toda reflexão abstrata ou ação prática é condicionada por certos compromissos básicos, que são, como veremos, de natureza religiosa.

No entanto, em grande parte a concepção pós-moderna da pedagogia  ainda é influenciada por premissas iluministas (tais como o racionalismo e o empirismo), e por isso absorve a ideia de que a interpretação da realidade é o resultado único de nosso aparelho cognitivo em suas dimensões racionais, lógicas ou sensíveis. Adicionam a isso a outra ideia de que o processo científico é arruinado quando os compromissos básicos entram em cena na mente humana ao invés de serem abandonados como desvios da verdade objetiva ou preconceitos irracionais.

De fato, é correta a denúncia do racionalismo pós-moderno contra os compromissos básicos, mas apenas quando estes são irrefletidos. No entanto, por outro lado, também é correta a observação de que nosso processo cognitivo não depende simplesmente da lógica, da experiência sensível ou do raciocínio geométrico. Fosse assim, todos chegariam sempre às mesmas conclusões. A alternativa é: os compromissos básicos (ou pressuposições) devem ser corrigidos, aclarados e justificados,[5] mas não extirpados ou ignorados em nosso processo de aquisição de informação.

Como disse anteriormente, esses compromissos básicos também podem ser chamados na epistemologia de pressuposições, que são, como define muito bem o apologista cristão James W. Sire (1933-2018) as nossas mais íntimas e importantes “(...) suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica de nosso mundo.”[6] Essas pressuposições de um indivíduo não estão exatamente em seu exercício teórico, no uso da razão ou da empiria, mas sim no que os teólogos bíblicos chamam de coração, o núcleo indivisível do ‘eu’ humano que dá forma à sua natureza pré-teórica e que condiciona toda a teoria e prática subsequente.

Essa natureza pré-teórica do sujeito conhecedor como algo determinante no posterior processo educativo intelectual e prático é reconhecida por muitos filósofos como Kant (1724-1804), Goethe (1749-1832), Humboldt (1769-1859), Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831), Kierkegaard (1813-1855), Dilthey (1833-1911), Nietzsche (1844-1900), Wittgenstein (1889-1951) e Foucault (1926-1984). Tendo reconhecido a importância das pressuposições (embora de formas diferentes), o fizeram em grande parte a partir do uso do conceito cosmovisão (do alemão Weltanschauung [visão de mundo] e algumas variantes que abordarei) em suas obras.

Portanto, esse é o assunto que pretendo explorar a seguir: a teoria epistemológica da cosmovisão e sua relação com a educação. Questões importantes serão tratadas como: o que os filósofos de Kant em diante disseram sobre a cosmovisão e a educação? Como esse tema nos ajuda a entender a importância das pressuposições no processo de ensino-aprendizagem? Como o estudo das pressuposições nos auxiliam a entender o que está por detrás das informações que são transmitidas pelos professores ou de como são interpretadas pelos alunos atualmente? Até que ponto ela capacita os professores a um exercício docente que valorize mais a apresentação das crenças básicas dos alunos?

Além disso, questões ainda mais difíceis (para cristãos e não cristãos) deverão surgir ao final, como: se a razão, a lógica e os sentidos não devem ser os juízes máximos do conhecimento humano, o que ou quem deve ter a autoridade de avaliar a veracidade ou a falsidade de nossas pressuposições? Como este estudo pode nos impulsionar na tarefa de construção de uma cosmovisão distintamente cristã (com pressuposições teístas) que avalie cientificamente o todo da realidade, da teoria da química, da prática botânica até a terapêutica da psicologia?

Para tanto, além dos autores supracitados que trabalharam o tema da cosmovisão, pretendo explorar os argumentos de filósofos e teólogos cristãos como James Orr (1844-1913), Abraham Kuyper (1837-1920), Herman Dooyeweerd (1894-1977), James Olthuis (1938-), Francis Schaeffer (1912-1984), Albert Wolters (1942-), Ronald Nash (1936-2006), Arthur F. Holmes (1924-2011), John H. Kok (1948-2020), David Naugle (1952-2021), James W. Sire (1933-2018) e brasileiros como Mário Ferreira dos Santos (1907-1968) e Hermistein Maia (1956-).

Dedico as reflexões que surgirão ao Rev. Azael (IPBNE) que em novembro de 2017, através de palestras sobre Cosmovisão Cristã Reformada, me apresentou pela primeira vez o assunto da cosmovisão. Também aos meus primeiros alunos do norte do país (Santarém, Belém, Altamira, etc.) que, de julho a agosto de 2020, me incentivaram a produzir e também acompanharam com empenho e interesse as aulas sobre cosmovisão cristã aplicada ao trabalho.



[1] Refiro-me aqui especialmente à tese de neutralidade do sujeito nas ciências sociais. É possível identificar nas obras do sociólogo francês Auguste Comte (1798-1857), criador da Filosofia Positivista, teses que justificassem não apenas a neutralidade do pesquisador em relação ao objeto pesquisado, mas também o uso da neutralidade como único caminho possível para alcançar a verdade científica. Para Comte, as dinâmicas sociais são fatos que precisam ser apreendidos por meio do afastamento radical entre sujeito e objeto. Esse afastamento permite ao sujeito contemplar o objeto de maneira neutra e imparcial. (Cf. Auguste Comte. Cours de philosophie positive. Tomo VI. París: Bachelier, Imprimeur-Libraire, 1839, pp. 190-191.)

[2] O filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994) foi um crítico do materialismo e sua pretensão de neutralidade moral na produção científica. Segundo Popper, a "(...) teoria de que os homens são máquinas não [é] apenas um erro, mas também (...) uma propensão a minar a ética humanas." (Popper, 1991, p. 21). Em suas obras, Popper faz uma incursão na história para mostrar que "(...) a doutrina de que os homens são máquinas, ou robô, é bastante antiga" (Popper, 1991, p. 20). E em seguida, afirma que "(...) sua primeira formulação, clara e convincente, é devida, ao que parece, ao título de um famoso livro de La Mettrie, Man and Machine [1747].” (Cf. Popper, K. O eu e seu cérebro. Campinas: Papirus; Brasília: UnB, 1991.)

[3] CLOUSER, Roy A. O Mito da Neutralidade Religiosa (University of Notre Dame Press, Notre Dame, 1ª ed. 1991; 2ª ed. 2005).

[4] Popper, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021. p. 97.

[5] É preciso deixar claro que a visão da ontologia do ser humano que assumo neste texto não defende a simetria de suas manifestações. Pois, embora o ser do homem seja constituído essencial, intrínseca e inatamente de pressuposições de natureza religiosa, essas pressuposições não são semelhantes em exercício ou em fenômeno. Por exemplo: dois homens devido a espécie e natureza (ontologia), independente de época, local ou língua sempre terão pressuposições (epistemologia), mas, devido ao contexto cultural, nem sempre terão as mesmas pressuposições nem as representação de maneira semelhante (fenomenologia). Sendo assim, a correção ou justificação das pressuposições não se dá no nível ontológico, nem no epistemológico, mas no fenomenológico e pessoal. Não se dá aqui a abertura para que o homem seja artífice de seu próprio ser.

[6] SIRE, James W. Dando Nome ao Elefante: cosmovisão como um conceito. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. p. 29.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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