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Uma nota introdutória sobre o que pensar ao começar a pensar


Por: Fernando Razente
Data: 04/07/2023
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“(…) o observador nunca é neutro; ele tem sempre um sistema de referenciais, ele tem pressupostos pelos quais sustenta as coisas que descobre.” — Francis Schaeffer1

Esta é uma história já bem conhecida entre meus amigos mais próximos. No primeiro ano cursando História, tive uma aula — na disciplina de Filosofia da Educação — sobre epistemologia, isso é, a reflexão sobre “(…) a teoria do método ou bases do conhecimento.” Trata-se da teoria de como chegamos a conhecer algo ou de como podemos ter certeza que conhecemos[1], conforme escreveu Francis Schaeffer em He Is There an He Is not Silent.

Me recordo da aula ser norteada por um famoso texto do filósofo alemão Immanuel Kant (1724–1804). No texto Resposta à pergunta: que é o ‘esclarecimento’?, — publicado em 1783 na revista Berlinische Monatsschrift — Kant faz uma defesa da busca pela, chamada, “maioridade” do pensador, ou seja, uma possibilidade de ser um pensador exaustivamente livre, sem possuir nenhum vínculo com reflexões anteriores ou dependência de outros intelectuais, filósofos, historiadores, teólogos, etc., para se chegar à verdade.

Foto: Divulgação

Nas palavras do próprio Kant no texto, o “Esclarecimento [“Aufklarung”] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tenha coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.”[2]

Para Kant, a “maioridade” intelectual é o resultado de quando o pensador faz uso de sua razão “sem a direção de outro” e, na descoberta da verdade, ele procura “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”. Naquela ocasião como calouro, o único contraponto que me veio à mente foi a seguinte questão: “Neste caso, estando Kant correto, devo ou não dar ouvidos aos meus professores nos meus próximos anos de curso? Não seria ‘minoridade’ depender de tutores?”

Essa questão ficou em minha mente. Passado um ano, li um pequeno livro do filósofo alemão Martin Heidegger (1889–1975), intitulado Identidade e Diferença (1957). Nele, Heidegger dizia que a proposta de uma razão pura, neutra e imparcial à nível epistemológico pode ser refutada observando a própria estrutura da linguagem que o pensador faz uso — seja a alemã que Kant usava para defender essa ideia, seja qualquer outra.

Naqueles dias frios em que lia Heidegger, percebi — o que Wittgenstein também haveria de me ensinar — que qualquer linguagem (nossa ferramenta básica de pensar) é previamente composta por etimologias construídas por outras mentes anteriores a do usuário carregadas de sentidos e significados concebidos por outros e que constitui como a base de toda reflexão filosófica do pseudo livre pensador.

Notei que para o projeto de Kant ser racionalmente possível, seria necessário a invenção de uma linguagem nova, com conceitos absolutamente isentos de influências anteriores ou até mesmo contemporâneas. Esse projeto, ao meu ver, é simplesmente impossível. Não há possibilidade de neutralidade intelectual numa condição existencial tão vulnerável e dependente de outros como a humana. A evidência claríssima é que partimos sempre para pensar expressando uma dependência, um “sistema de referenciais”, como disse Schaeffer. Porém, nunca “puros” ou isentos intelectualmente.

Indo além, a “maioridade” não só é um projeto impossível na perspectiva de Heidegger e outros por ser racionalmente inconcebível, como também se revela como uma proposta intelectual altamente arrogante, expondo sérias contradições.

Por exemplo: ao lecionar Cultura Religiosa, mostro aos meus alunos que a grande crítica dos kantianos à religião concentra-se no conceito de dogma — uma realidade de caráter indiscutível, um compromisso de adoração e fé. De fato, esse é um dos aspectos fundamentais da religião cristã, e ela é sustentada por vários dogmas de importância radical para os cristãos (como a divindade de Cristo, a concepção virginal de Maria ou a Trindade).

Todavia, ao fazer essa crítica, os livre pensadores kantianos não percebem também seu compromisso altamente religioso com o pretenso projeto de Esclarecimento. Como escreveu o Prof. Jonas Madureira, “Eles acreditam que é possível atingir a maioridade justamente porque acreditam que estão livres de todos os dogmas.”[3] No entanto, isso não passa de uma crença. Não há provas com testes ou falseabilidade à viabilidade de um livre pensamento. Há apenas crença confortável e pessoal nisso, ou seja, dogma.

Muitos kantianos devotam o coração a esse dogma, e elevam a capacidade racional individual a um nível divino, de total auto-existência, independência e autonomia em relação a tudo. No fim, não passa de uma questão de fé e dogma. Talvez, reconhecendo a pretensão deste projeto chegando à níveis assustadoramente arrogantes na modernidade, o filósofo Michel Foucault (1926–1984) tenha confessado sua experiência, nos dando mais razões para ir contra essa tese: “Não sei se algum dia nos tornaremos maiores. Muitas coisas em nossa experiência nos convencem de que o acontecimento histórico da Aufklarung não nos tornou maiores; e que nós não o somos ainda.”[4]

Concluo lembrando que nenhum pensador está completamente livre de associações e compromissos anteriores, sejam os horizontais entre nós e o mundo ao nosso redor, sejam os verticais, entre nós e Deus ou um ídolo. O livre pensador nunca está numa posição de absoluta independência. “Nossa inteligência” escreveu Jonas Madureira, “não foi feita para ser livre. Ela sempre está submissa a alguma cosmovisão.” Qual a sua cosmovisão? É ela que direciona todos os resultados de seus empreendimentos intelectuais. Ao começar a pensar, pense naquilo que condiciona seu pensar: sua cosmovisão.



[1]Francis Schaeffer, O Deus que se revela, p. 88.

[2]Immanuel Kant, Resposta à pergunta: que é ‘esclarecimento’?, p. 100.

[3]Jonas Madureira, Inteligência Humilhada, p. 107.

[4]Michel Foucault, “O que são as Luzes?”, in: Michel Foucault: arqueologia das ciências e histórias dos sistemas de pensamento, organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005), p. 351.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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