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Sobre o preparo moral do leitor


Por: Fernando Razente
Data: 01/08/2023
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Durante meu almoço na semana passada, trocava mensagens com um amigo e colega sobre nossas leituras, quando ele expressou seu profundo desgosto com sua experiência literária mais recente. Pesquisador sério e historiador, ele estava a meses tentando digerir o Mein Kampf (Minha Luta), o livro de dois volumes de autoria do Führer da Alemanha Nazista de 1934 até 1945: Adolf Hitler (1889-1945).

A leitura é psicologicamente perturbadora. Trata-se de um livro autobiográfico e de manifesto político de Hitler. Nele, o ditador alemão escancara suas estratégias contra a liberdade individual, promovendo os principais elementos do nazismo: um antissemitismo raivoso, uma visão de mundo racista, e uma política externa agressiva direcionada a abocanhar o que ele considerava um Lebensraum (espaço vital) na Europa oriental. De fato, ler tal obra é um enorme desafio intelectual.

Durante a conversa, encontrei uma notícia de 2022 relatando que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), através do colegiado da Primeira Câmara Cível, decidiu manter a proibição da comercialização do livro Mein Kampf no site de vendas da Estante Virtual. Além disso, descobri que recentemente um deputado estadual do Mato Grosso do Sul exibiu o livro Mein Kampf, durante uma sessão na Assembleia Legislativa do Estado, reclamando de uma suposta proibição ao livro não porque fazia apologia ao nazismo, mas porque se preocupava com o controle estatal na produção literária.

Embora não exista uma proibição à nível constitucional da publicação da obra, já existem casos de leis municipais criminalizando o comércio, a publicação, a distribuição e a circulação do conteúdo integral ou parcial de Mein Kampf. É o caso da Lei 13.493 publicada no Diário Oficial de Porto Alegre. O projeto havia sido proposto pela vereadora Mônica Leal (PP) em janeiro do ano passado. As proibições previstas englobam igualmente as publicações em formato digital (e-books).

Foto: Divulgação

O meu parecer inicial sobre essas intervenções políticas na cultura literária foi que todo esse controle estatal era um desserviço à ‘pesquisa acadêmica séria’. Como ser um historiador fiel às fontes sem ter acesso às fontes? Já o meu colega entendeu, em certo sentido, a proibição e as preocupações envolta da disseminação do livro.  No fim, concluímos que tratar da proibição é tratar de um tema extremamente sensível e complexo. Por isso, deixando o assunto da proibição um pouco de lado, passei a pensar em outra questão, um pouco mais simples.

Pensemos concretamente na realidade brasileira onde não existe a proibição constitucional de publicação do livro escrito por Hitler. Qualquer indivíduo que já esteja próximo de aderir ideias totalitárias poderia ser incentivado a ir a termo pela obra. É óbvio que a parcela de responsabilidade do indivíduo precisará ser mantida, assim como a parcela da criança que desobedece a mãe para ficar longe do fogão para não se queimar e se queima. Mas a mãe ainda tem responsabilidade, especialmente se não teve cuidado de manter a criança longe do fogão se lhe fosse possível.

 Da mesma forma, o aluno de caráter tirânico e racista será responsabilizado pela leitura acrítica e ávida da obra. Mas e o professor? Qual a responsabilidade do educador na orientação bibliográfica e na vida literária de seus alunos? Por um lado, é impossível lecionar a Segunda Guerra Mundial sem mencionar essa fonte histórica importante. Por outra, como podemos garantir que o aluno curioso lerá a obra apenas como fonte histórica? Na minha opinião, não podemos. Isso está fora da nossa alçada.

O que podemos fazer é, como uma mãe na infância, conscientizar os alunos que assim como o fogo, um livro que seja mal manuseado torna-se extremamente perigoso. Mas no que consiste esse manuseio adequado senão na força moral? Como educadores, devemos ter a sensibilidade para entender que existem livros que precisam de um longo preparo moral para serem lidos. Existem livros que precisam de longas abordagens contextuais e históricas a nível moral antes de serem indicados (como ler cuidadosamente Em busca de sentido (1946) de Viktor Frankl antes do Mein Kampf).

Não se pode ler qualquer coisa em qualquer momento da vida, porque para todo propósito literário há tempo e modo (Ecl 8.6). Há grande sabedoria nisso. Foi uma péssima ideia para mim ler O Existencialismo é um humanismo (1946) de Sartre em um momento espiritualmente delicado, e uma ótima ideia ler Confissões (397-400 d.C.) de Santo Agostinho em outro momento delicado. Por isso, acredito que antes de fazer surgir um bom leitor, o dever do professor (juntamente com a família) é fazer florescer um bom ser humano, através do treinamento moral e espiritual, do cultivo de valores objetivos e universais e do amor à verdade.

Aliás, para alcançar esse objetivo é necessário ser exemplo. Como a pedagoga italiana Maria Montessori (1870–1952) declarou, a “(...) preparação que nosso método exige do professor é o auto-exame, a renúncia à tirania. Deve expelir do coração a ira e o orgulho, deve saber humilhar-se e revestir-se de caridade. Estas são as disposições que seu espírito deve adquirir, a base da balança, o indispensável ponto de apoio para seu equilíbrio. Nisso consiste a preparação interior: o ponto de partida e a meta.”  (A Criança, p. 178).

A conclusão é que um bom leitor de Mein Kampf ou qualquer outra obra é formado primeiro por uma boa educação moral, ensinada por um professor (e pais) de caráter humilde, manso e apegado à verdade.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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