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O idealismo na cosmovisão de Fichte


Por: Fernando Razente
Data: 21/11/2023
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“A possibilidade desta convergência [de natural e moral] só pode ser pensada através de sua dependência mútua de um legislador superior, que serve de base para ambos.”

– J. G. Fichte, Tentativa de Crítica de toda Revelação (1792)

 

A história da filosofia de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) – um dos mais influentes no movimento de Idealismo alemão – tem seu ponto de partida em 1790, quando, a pedido de seu pupilo, retorna a Leipzig pela segunda vez depois de completar seus estudos em Teologia na Universidade de Jena e de trabalhar como preceptor (professor particular de jovens) em Leipzig e Zurique.

O tal pupilo havia solicitado a Fichte estudos particulares de filosofia kantiana. Entretanto, neste período Fichte mal conhecia as obras de Kant, especialmente as Críticas publicadas em 1781, 1788 e 1790. Apesar disso – para espanto de qualquer diletante literário, mas não de professores que conhecem o pauperismo – Fichte aceitou o pedido e passou a estudar com afinco as obras de Kant, dando conta das três Críticas em poucas semanas!

Esse pequeno dado biográfico é importante pois nos orientará sobre o uso do termo cosmovisão na filosofia fichteana. É, pois, impossível entender a cosmovisão de Fichte sem o pano de fundo das obras de Kant. A leitura das Críticas foi de tal modo importante que moldaram em grande parte a filosofia de Fichte. Segundo Dario Antiseri e Giovanni Reale, “[...] o encontro com o pensamento de Kant revolucionou o pensamento e a vida de Fichte a ponto de ele não ter, no período imediatamente posterior, outra preocupação a não ser a de contribuir para a difusão do criticismo”. Retomemos, portanto, resumidamente a noção de cosmovisão em Kant.

Immanuel Kant havia cunhando o termo Weltanschauung na sua obra Kritk der Urteilskraft [Crítica do juízo], publicada exatamente em 1790 (ano decisório na vida vocacional de Fichte, quando devotou sua vida à Filosofia). Um bom resumo do sentido do termo pode ser encontrado na obra Visão Cristã de Deus e do Mundo (1891), do teólogo presbiteriano escocês James Orr (1844-1913). Orr argumenta que “a ideia de ‘Weltanschauung’ [em Kant] é atribuída à função de conexão sistemática de todas as nossas experiências em uma unidade de um mundo inteiro (Weltganz).”

Em outras palavras, Kant compreendia a cosmovisão como aquela buscar de tornar coerente e unida as nossas experiências (fenômenos) com o mundo (realidade) dadas aos sentidos. Já no outono de 1790, Fichte então trabalha em sua primeira interpretação da Crítica do Juízo. Como resultado, o filósofo produziu um texto não publicado (pois ele não conseguiu encontrar nenhum editor) intitulado Versuch eines erklärenden Auszugs aus Kants ‘Kritik der Urteilskraft’ [Uma tentativa de um trecho explicativo de a ‘Crítica do Julgamento’ de Kant]. Assim, foi neste momento que Fichte entrou em contato com a noção kantiana da visão de mundo.

Dois anos depois, Fichte decide construir sua própria compreensão do que consiste uma cosmovisão. É em sua obra de 1792, Tentativa de Crítica de toda Revelação que aparece, finalmente, o termo Weltanschauung. Em sua compreensão, cosmovisão é a unificação dos domínios da teoria científica natural e do raciocínio moral na ideia de um Ser, um Legislador Superior. Segundo o especialista em cosmovisão, David Naugle (1952-2021), na obra Worldview: The History of a Concept (2002), Fichte entende o “[...] princípio de uma “legislação” superior que harmoniza as tensões entre liberdade moral a causalidade moral [que serve] como uma forma de perceber o mundo empírico”.

O próprio Fichte escreveu sobre a necessidade dessa harmonização: “A possibilidade desta convergência [Übereinkunft] [de natural e moral] só pode ser pensada através de sua dependência mútua de um legislador superior, que serve de base para ambos [...] Se pudéssemos fornecer uma Weltanschauung como base para o princípio desta legislação, seria o caso, de acordo com este princípio, que um e o mesmo efeito – que em relação ao mundo dos sentidos de acordo com a lei moral é livre e remete à causalidade da razão, mas que na natureza parece como coincidência – ser reconhecido como completamente necessário.” (GA I, 1, p. 70).

Fichte ecoa a sugestão de Kant de uma cosmovisão para unificar coerentemente nossa experiência com o mundo, mas note a novidade da cosmovisão de Fichte na passagem: o filósofo coloca o weltanschauung, particularmente, numa visão de Deus sobre o mundo (!). Por quê? Para Fichte, a grande dificuldade consistia em responder a seguinte questão: como demonstrar a coerência da busca humana por explicar a ciência e a moralidade? E qual o fundamento lógico, unívoco e primordial dessas realidades experienciadas separadamente?

A resposta de Fichte não poderia ser circular e explicar a lógica pela lógica. Ele precisava alcançar um fundamento primordial, uma causa não causada e, por si, necessária. Essa realidade, para Fichte, seria o Legislador Supremo – que é Deus – um Ser necessário como fundamento tanto da realidade natural como da moral. Como escreveu o erudito jesuíta e historiador da filosofia Frederick Copleston (1907-1994), para Fichte, “a ideia da possibilidade de uma lei moral exige a crença em Deus [...]”.

O problema que Fichte tenta resolver através de sua cosmovisão é o estabelecimento de um idealismo intuitivo da relação entre razão teórica (ciência) e vida prática (moralidade). É na tentativa de esclarecer como uma cosmovisão pode explicar a unidade entre ambas as realidades que Fichte desenvolve seu idealismo – denominada pejorativamente por críticos de “misticismo racional”    assentado na crença da existência de um ser absoluto, infinito e transcendente, isto é, Deus, o Ser que é o fundamento da ordem moral e natural do Universo.

Portanto, Fichte sugere que Deus é a base para a união dos domínios moral e natural, e que “[...] a unidade real destes é fundamental para a ‘cosmovisão’ do divino”, escreve Naugle. Essa cosmovisão também pode ser identificada como a base da filosofia da religião fichteana que sustenta a realidade de uma ordem inteligível das coisas que assim existem “graças ao autor suprassubjetivo desta ordem. Um Deus [que] vivo se torna o fundamento último da moral [...]”, explica o professor e filósofo francês Jérôme Lèbre (1967-).

 

 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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