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Immanuel Kant (1724-1804) e o Weltanschauung


Por: Fernando Razente
Data: 25/09/2023
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“Como é possível tenham os homens levado trinta séculos para perceber que uma crítica do processo raciocinante é o pré-requisito necessário a qualquer verdades que se baseiam na razão?”

– Julien Benda (1867-1956), escritor francês, autor de O Pensamento Vivo de Kant.

 

Cosmovisão é um conceito relativamente recente nas disciplinas da filosofia, teologia e pedagogia; embora não deixe de ter uma história rica e elaborada. Três obras são fundamentais para adentrar neste assunto tão relevante: Worldview: The History of a Concept (2002), de David Naugle; Stained Glass: Worldviews and Social Science (1989), de Paul A. Marshall, Sander Griffoen e Richard Mouw e a International Encyclopedia of the Social Sciences, publicada pela primeira vez em 1968.

Antes de chegarmos ao conceito mais preciso de cosmovisão – para, em seguida, aplicá-lo à educação – faremos uma longa jornada por autores diversos que tentaram explorar esse conceito e sua definição mais básica. A terminologia original para o conceito de cosmovisão é weltanschauung, um substantivo feminino alemão composto de duas palavras: “Welt” (mundo) e “Anschauung” (visão, contemplação, concepção, ponto de vista, intuição ou convicção).

O escritor e professor de filosofia Arthur F. Holmes (1924-2012), em  Contours of a Worldview (1983) lembra-nos que “(...) a linguagem de cosmovisão deriva de vertente românticas do idealismo do século XIX e de seus herdeiros da tradição Lebensphilosophie do início do século XX.” Essa vertente idealista refere-se aos filósofos alemães daquele período histórico que procuravam construir sistemas metafísicos da cultura (metanarrativas filosóficas, científicas e religiosas) como se observa nas obras de idealistas e românticos alemães como G. W. F. Hegel (1770-1831), F. W. J. Schelling (1775-1854), J. G. Herder (1744-1803), J. W. Goethe (1749-1832) e outros.

Tal derivação do século XIX também é reconhecida por Andreas Meier em artigo publicado em 1997, onde o autor traça o nascimento do termo weltanschauung desde os idealistas. Portanto, é fora de dúvida histórica que este termo obteve proeminência na Europa e especialmente na Alemanha durante o século XIX com os filósofos supracitados. Mas a partir de uma análise das obras e concepções filosóficas do antigo reitor da Universidade de Königsberg Immanuel Kant (1724-1804), é possível retroceder ainda mais sobre a origem do termo para o no final do século XVIII.

No chamado “século de Goethe”, como declarou o filósofo da hermenêutica Hans-Georg Gadamer (1900-2002), uma variedade de (...) conceitos e palavras-chave que nós ainda utilizamos receberam seu carimbo especial”, e entre elas estava exatamente a palavra weltanschauung (visão de mundo). Durante esse período culturalmente fértil, Immanuel Kant acabou cunhando o termo weltanschauung na sua obra Kritk der Urteilskraft [Crítica do juízo], publicada em 1790. Para o francês Julien Benda (1867-1956) – um de seus biógrafos –, a Crítica do Juízo é uma obra “(...) das mais exaltadas e mais genuínas, porque mais nobre, das suas ideias, conquanto não seja a que mais efeito causou sobre a humanidade.

No entanto, embora tenha cunhado o termo, Kant o fez, como declara James W. Sire, “(...) só de passagem” e sem muitas profundidade. A elaboração maior do termo viria com os seus herdeiros intelectuais. Ainda assim, é importante ressaltar o pioneirismo de Kant na semântica da cosmovisão, como fez Gregory A. Clark ao dizer que a “(...) noção de ‘perspectiva cosmovisão’ se torna possível pela primeira vez com o trabalho de Kant.” E em que consiste essa perspectiva de cosmovisão?

Uma boa resposta se encontra na obra Visão Cristã de Deus e do Mundo (1891), do teólogo presbiteriano escocês James Orr (1844-1913). Orr argumenta que “(...) a ideia de ‘Weltanschauung’ entrou de forma proeminente no pensamento moderno através da influência de Kant (...) à qual é atribuída a função de conexão sistemática de todas as nossas experiências em uma unidade de um mundo inteiro (Weltganz).”

Em outras palavras, a leitura que Orr faz da noção de cosmovisão em Kant é de uma função cognitiva experienciada no mundo sensível com o objetivo de organizar e dar sentido às mais variadas situações da vida numa unidade explicativa.

Uma outra leitura do termo weltanschauung de Kant vem do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Para Heidegger, a cosmovisão em Kant é um conceito criado para se referir a uma “intuição de mundo” advinda da cognição do ser humano; algo que antecede e independe de conhecimento empírico ou de uma avaliação racional mais específica..

Essa “intuição” é resultante da percepção ou contemplação geral do mundo; é uma capacidade inicial [contrário ao uso racional e metodológico] de perceber a realidade sensível e posteriormente organizá-la numa unidade explicativa. Portanto, a cosmovisão para Kant é o entendimento primordial e intuitivo da realidade sensível.

Embora não seja uma definição tão precisa quanto as que veremos nos próximos autores, o mérito de Kant se mantém, principalmente pela honrosa tentativa de procurar entender os fundamentos do conhecimento humano e os pré-requisitos do uso da razão. Trata-se de um exemplo de análise crítica para nós que amamos a vida intelectual.

Afinal, qual o sentido de nos esforçarmos para ensinar e ansiar para que nossos alunos aprendam se não nos preocupamos com a existência e a natureza dos fundamentos do exercício intelectual? Como ensinar os jovens a pensar se, muitas vezes, nós professores, nem sabemos (e nem desejamos saber!) o que significa ou como se dá o ato de pensar racionalmente? Pelo menos neste sentido, Kant é um legado fenomenal.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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