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Sagrado Acadêmico


Por: Fernando Razente
Data: 29/08/2024
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Providencialismo: uma filosofia cristã da História[1]

Giovana Molina Gonçalves[2]

Júlia Yuri Endo[3]

 “Sejam religiosas ou ateias, otimistas ou pessimistas, todas [as filosofias da história] têm em comum atribuir um sentido para a história.”

— Guy Bourdé (1942-1982) e Hervé Martin (1940-) em As escolas históricas, p. 91.

“Embora a famosa distinção entre o Estado (ou Cidade, na antiga acepção do termo) de Deus e o Estado do demônio lhe fosse sugerida pela Bíblia, estes dois conceitos assumem, na pena de Agostinho, significado muito mais vasto, vindo a constituir-se numa visão panorâmica de toda a história religiosa da humanidade.”

  Philotheus Boehner (1902-1955) e Etienne Gilson (1888-1978), em História da Filosofia cristã, p. 197.

“A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através da impiedade e dos tempos, vivendo cá embaixo, pela fé, e com paciência, espera a firmeza da mansão eterna, enquanto a justiça não se converte em juiz, o que há de conseguir por completo, depois, na vitória final e perfeita paz.”

— Santo Agostinho (354 d.C. - 430 d.C.), professor, teólogo, bispo católico, autor de A Cidade de Deus (426 d.C.)

A História, enquanto ciência das narrativas das ações culturais do homem no tempo e no espaço, carrega em si mesma o elemento filosófico da epistemologia. Historiadores e filósofos se encontram, mais claramente, neste ponto.

A epistemologia é fundamental para o estabelecimento correto das teorias de análise histórica e, como escreveu o filósofo holandês Herman Dooyeweerd (1894-1977), os historiadores “(...) na medida em que não estão interessados nos problemas epistemológicos de seu ramo de ciência, não são capazes de questionar a natureza específica de seu ponto de vista científico.” (2018, p. 132).

Por isso, é de extrema importância compreender o que caracteriza o ponto de vista filosófico (epistemológico) de um historiador, isto é, sua filosofia da história. Na ciência da História, esse “ponto de vista filosófico” também é chamado de teoria. Teoria é uma ferramenta de análise. É uma “forma de ver” uma determinada coisa. Pode-se incluir na teoria: abstrações, hipóteses, axiomas, crenças, compromissos básicos e pressuposições.

São os elementos de cada uma dessas categorias que compõem uma teoria e é a teoria que encaminhará o historiador para uma determinada forma de ver e descrever a história. Quando perguntas surgem, como: “o que é o tempo?”, “o que é o homem?”, “o que é o espaço?”, “o que é um documento?”, “existe uma verdade?”, “o que é o mundo?”, “existe um Deus?”, “o desenvolvimento histórico tem uma finalidade?”, as respostas que os historiadores costumam dar para essas perguntas são condicionadas por suas teorias.

Embora não tenha ficado conhecido como historiador propriamente, um dos pensadores que estabeleceu uma nova “forma de ver” o desenvolvimento histórico foi o intelectual católico Santo Agostinho, já no século V d.C..

Partindo de um ponto de vista religioso-cristão, o filósofo e teólogo africano — possuindo forte influência dos conceitos e ideias de Platão (427-347 a.C.) com a divisão do mundo das ideias e o mundo dos sentidos — elaborou uma filosofia da história conhecida como Providencialismo.

Segundo essa teoria desenvolvida como tentativa de dar sentido a eventos relacionados a História de Roma, fazendo referência ao famoso Saque de Roma pelos Visigodos em 410 d.C. e ao antigo Saque de Roma pelos Visigodos em 387 a.C. a história romana e de todos os seres humanos só podem ser explicadas a partir do assentimento intelectual da existência de duas realidades coexistentes que são regidas por um Deus pessoal e ativo: a Civitas Dei (Cidade de Deus) e o Regnum Peccati (Reino do Pecado).

A história humana é o palco destes dois reinos, onde uma disputa dualista entre o bem (Cidade de Deus) e o mal (Reino do Pecado) ocorre. Tanto a Civitas Dei como o Regnum Peccati são oriundos ou inspirados em “atitudes mentais e morais” dos seres humanos que guiam a história de cada indivíduo.  Como argumentam os historiadores da filosofia Boehner e Gilson, Agostinho “(...) tem em vista não são propriamente duas corporações distintas e visíveis, tais como o Estado terreno e a Igreja, enquanto organização visível, mas antes duas comunidades inspiradas em atitudes mentais e morais divergentes.” (2012, p. 197).

 É importante destacar que a Civitas Dei, embora seja compreendida como uma realidade espiritual, se faz presente no coração dos eleitos de Deus, caracterizada pelo amor a Deus e desprezo de si mesmo. Por outro lado, o Regnum Peccati, que também é, como princípio, uma realidade espiritual, se faz presente na alma daqueles que vivem pelo amor a si mesmos e desprezam a Deus.

Assim, com o palco montado com atores dos dois lados, a história se desenvolve desde os tempos mais antigos. Existe, portanto, uma luta épica e milenar entre os bons e maus guiada pelos reinos divergentes que constitui o motor da história humana. É esse conflito que para Agostinho explica e move cada detalhe da história em um sentido linear. Como escreve o medievalista francês Jacques Le Goff (1924-2014): “O cristianismo [nas penas de St. Agostinho] teria substituído as concepções antigas de um tempo circular, pela noção de um tempo linear e teria orientado a história, dando-lhe um sentido” (Le Goff: 1984).

Agostinho atribui à sua teoria uma característica teleológica (do grego τ?λος, finalidade), que faz possível ao pensador africano identificar filosoficamente a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade em conflito pelo curso do tempo no espaço. Não há na luta entre a Cidade de Deus e o Reino do Pecado um estado de caos e absurdo, mas por trás disso, existe uma finalidade que lhe confere sentido. Mas qual seria essa finalidade?

Para Agostinho é a boa vontade divina. No Providencialismo agostiniano, Deus é o princípio do tempo e da história, e portanto, regente maior da trama, podendo interferir providencialmente e determinar o curso do conflito, ora permitindo espaço para o Reino do Pecado, ora restringindo sua ação em benefício da Cidade de Deus, a qual sustenta com sua graça e amor, até o fim dos tempos, onde a Cidade de Deus sairá vitoriosa.

Segundo o historiador francês Henri I. Marrou (1904-1977), a Cidade de Deus não aparece em sua completude instantaneamente, mas pela boa vontade e controle de Deus ela é construída lentamente, camada por camada, ao longo de toda a história humana, sendo o próprio sentido a sua significação. Trata-se de uma filosofia da história altamente relevante, haja vista que a grande parcela de cristãos no mundo, bem como no Brasil  — sejam católicos ou protestantes reformados —, assumem a mesma explicação de Santo Agostinho para o desenvolvimento histórico.



[1] Resultado do Trabalho Científico produzido para a Avaliação Formativa de Filosofia do 1º Semestre.

[2] Aluna da 3ª série 1 do Ensino Médio do Colégio Coração de Jesus.

[3] Aluna da 3ª série 1 do Ensino Médio do Colégio Coração de Jesus.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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