A Política de Fé, o Totalitarismo Nazista e os perigos da idolatria política
“O totalitarismo não se contenta com a obediência nem com a submissão: exige a transformação total da natureza humana.”
— ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, 2009, p. 438.
“Na política da fé, a autoridade do governo é ilimitada e abrangente porque seu objetivo é totalizante.” — OAKESHOTT, Michael. A política da fé e a política do ceticismo. É Realizações, 2018, p. 34
Ana Clara Bessegato[1]

O nazismo foi uma ideologia totalitária que surgiu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, num cenário de profunda crise econômica, instabilidade política e humilhação nacional. Liderado por Adolf Hitler (1889-1945) e pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), o regime era autoritário, ultranacionalista, militarista e profundamente antissemita.
O discurso ideológico nazista se baseava na suposta superioridade da “raça ariana” e na demonização dos judeus, levando à perseguição e ao extermínio de milhões de pessoas durante o Holocausto (1933-1945). O Tratado de Versalhes (1919), que impôs duras sanções à Alemanha derrotada, agravou ainda mais a crise econômica: o marco alemão perdeu seu valor de forma drástica e o desemprego atingiu cerca de 8 milhões de pessoas.
Segundo os historiadores, esse colapso econômico e social preparou o terreno para a ascensão de discursos radicais e messiânicos, como o de Hitler, que buscava aparelhar o Estado e fazer dele o único e mais sublime veículo de salvação existencial da Alemanha, através do que ficou conhecido como totalitarismo.
Em sua obra Origens do Totalitarismo, de 1951, Hannah Arendt (1906-1975), filósofa da política de origem judaica, destaca que o totalitarismo – enquanto filosofia política – floresce quando as pessoas estão isoladas, desorientadas e sem referências morais, espirituais ou sociais que sejam confiáveis. O nazismo não apenas capturou esse vácuo de referências na sociedade, mas buscou direcioná-lo para o Estado, onde todos os aspectos da vida humana — da educação à moral, da linguagem ao pensamento – encontrariam finalmente seu sentido e evolução. O Estado, comandado por Hitler, seria o guardião da esperança de uma nação em desespero moral e social.
Essa característica peculiar do nazismo – um regime totalitário – pode ser interpretada à luz da teoria política do filósofo conservador inglês Michael Oakeshott (1901-1990), como uma manifestação extrema daquilo que ele denomina “política de fé”. Esse conceito, elaborado em seu livro The Politics of Faith and the Politics of Scepticism [As políticas de fé e as políticas do ceticismo], publicado em 1962, refere-se ao impulso de muitos políticos utópicos e revolucionários em usar o poder do Estado para promover a ideia de salvação ou a perfeição da sociedade humana.
Para a realização de suas utopias políticas, tais políticos precisam fazer crer que toda a vida humana precisa estar subordinada ao poder ilimitado e oniabrangente do Estado “salvador”. Como escreve Oakeshott: “Na política de fé, a autoridade do governo é ilimitada e abrangente, porque seu objetivo é totalizante.” (1996, p. 34) Nesse sentido, o regime nazista não se contentava com a obediência externa dos cidadãos; ele exigia uma transformação interior, uma completa reconfiguração da subjetividade humana em nome de uma causa redentora — a “grandeza” da nação, a “pureza” racial, o império ariano.
Retomando Hannah Arendt, a autora também destaca essa dimensão existencial e espiritual da filosofia totalitária do Estado e sua relação com as políticas de fé: “O totalitarismo não se contenta com a obediência nem com a submissão: exige a transformação total da natureza humana.” (2009, p. 438) Trata-se, portanto, de um projeto político com pretensões mais que civis ou legais, mas sim religiosas, deslocando a esperança da salvação da esfera religiosa para o domínio do Estado e da figura de um líder que assume a posição de messias. Hitler foi apresentado como um messias político, capaz de redimir a Alemanha da vergonha, do caos e da “impureza”. Por outro lado, a propaganda, a censura, a doutrinação da juventude e o uso sistemático do medo se tornaram condições necessárias para que milhões se submetessem, voluntariamente, a esse projeto de fé totalizante.
O fato é que sempre que uma política de fé é implementada, como analisa Oakeshott, ela tende a eliminar os freios institucionais e a pluralidade, desembocando em uma visão totalitária do Estado. Afinal, qualquer dúvida ou ceticismo num contexto de política de fé é visto como traição e incredulidade e a oposição é vista como encarnação do mal moral que impede o avanço do bem redentivo. No caso do nazismo, essa lógica justificou o antissemitismo como “missão moral”, vendo os judeus como “os diabos da história”, e não apenas cidadãos, seres humanos, com visões diferentes sobre a economia e a sociedade. O conceito de Lebensraum (espaço vital), por exemplo, também foi usado para legitimar a expansão territorial como uma necessidade biológica e espiritual do povo alemão!
Os estudos sobre o totalitarismo nazista e das políticas de fé não são apenas um exercício de investigação histórica, mas um alerta urgente para os riscos do presente, especialmente em nossa sociedade. Em diversas partes do mundo — inclusive no Brasil — observa-se o crescimento de movimentos que projetam esperanças messiânicas em figuras políticas, tratadas como salvadores da pátria. Há uma crescente idolatria política que substitui o debate racional e pluralista pela fé cega no Estado ou em líderes carismáticos, para usar a linguagem do sociólogo Max Weber. E isso é preocupante.
Teólogos e cientistas políticos cristãos como o brasileiro Franklin Ferreira e o canadense David Koyzis nos alertam para a necessidade de reformarmos nossa visão do Estado a fim de não promovermos novas formas de totalitarismo. Tais autores nos alertam para os discursos que prometem “salvar a nação”, “restaurar a ordem” ou “redimir o povo”; discursos que frequentemente ocultam projetos autoritários que buscam suprimir a crítica e silenciar as divergências, além de elevar meros seres humanos à categoria de “redentores da nação”. Tal visão deve ser repudiada. Como declarou Franklin Ferreira na obra Contra a idolatria do Estado: o papel do cristão na política (2016) “O repúdio à idolatria do Estado e a necessária resistência dos cristãos ao autoritarismo, especialmente ao totalitarismo.” (p. 15).
Na obra Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas (2014), David T. Koyzis argumenta com precisão que existem muitas ideologias atualmente que tentam fornecer uma explicação total do mundo e de sua história, para que, em seguida, apresente um plano redentivo, resgatando assim, nos dias atuais, os mesmos elementos totalitários do século XX, e que são extremamente perigosos para as liberdades civis atuais.
Por fim, temos que nos lembrar que em contextos de crise social e declínio espiritual, como o Brasil recente, a tentação de entregar a liberdade civil em troca de promessas de redenção existencial por parte do Estado torna-se grande. Entretanto, como mostram Arendt, Oakeshott, Ferreira e Koyzis, o custo disso é alto: a supressão da liberdade, a criminalização da oposição, a manipulação da verdade, a idolatria de líderes políticos e, em casos extremos, o colapso moral e humano de toda uma sociedade em torno de um ideal utópico que promete purificar a humanidade do mal. Reconhecer e resistir às novas formas de política de fé que desembocam em totalitarismo é, portanto, uma responsabilidade ética e cidadã de todos, especialmente dos cristãos. Que o passado totalitário da Alemanha nos sirva de advertência — para que a esperança não nos cegue, e a liberdade não se perca.