A perspectiva dostoievskiana da natureza humana em “Notas do Subsolo” (1864)
“Sou um homem doente... um homem mau. Um homem desagradável.”
— Dostoiévski, Notas do Subsolo, L&PM, 2001, p. 13.
Por Marco Soares[1]
O que nos define como seres humanos? Esta pergunta nos conduz a um inesgotável debate sobre o que nos diferencia de outros animais e qual seria o fator central que define a humanidade como uma espécie. Certamente, o fator principal – da distinção clássica entre nós e os animais – é o fator racional; os racionalistas, por exemplo, defendem que a nossa glória enquanto espécie está no fato de que somos capazes de um alto intelecto e discernimento de escolhas. Somos racionais, livres e, por isso, humanos.
No entanto, nem todos os pensadores veem na nossa capacidade intelectual e na nossa liberdade existencial a principal marca da humanidade, e nem a enxergam como coisas essencialmente boas, ou capazes de nos conduzir ao que é belo e verdadeiro. Na verdade, ter liberdade e racionalidade nem sempre é sinônimo de ser livre e racional. São coisas distintas.
Essa era a opinião do romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), em seu livro Notas do Subsolo, publicado em 1864. O Notas do Subsolo é uma clara crítica aos pensadores racionalistas e um contra-argumento à ideia de que o ser humano, no uso de sua liberdade de escolha e da razão, será sempre capaz de se conduzir à felicidade e à moralidade.
O narrador, o “homem do subsolo”, é um funcionário público de São Petersburgo, na Rússia. Esta personagem curiosa e central é um um homem amargo, ressentido e introspectivo; mas alguém que tem – diferentes dos seus pares – a consciência de toda a sua doença moral e psíquica. Ele sabe que é ruim. E mais: ele tem pleno domínio racional sobre as origens e causas de sua amargura, ressentimento e antipatia social. Ele sabe que é “(...) um homem doente... um homem mau. Um homem desagradável.”
Apesar de ter consciência elevada e bem detalhada de sua maldade, ele não consegue mudar. E o motivo principal não é falta de conhecimento ou liberdade, mas de desejo. O homem do subsolo não muda porque não quer mudar, pois: “Quem foi que disse que o homem quer apenas o próprio bem? O homem às vezes deseja sinceramente o que é prejudicial para si mesmo.” (2001, p. 30).
Em outras palavras, Dostoiévski – através do homem do subsolo – substitui o conceito de homo sapiens, pelo homo desiderans (espécie desejante). Diante de situações e circunstâncias em que somos forçados a agir, o que predomina na ação humana não é a razão ou o intelecto, mas o aspecto antropológico do desejo: “O que importa que isso esteja contra as leis da natureza e da aritmética? Se for contra a aritmética, que se dane a aritmética!” (2001, p. 32).
Esse aspecto – que nós muitas vezes chamamos de irracional e inumano – é para Dostoiévski o fator principal da natureza humana. O ser humano só é corretamente compreendido quando visto em sua natureza contraditória, irracional e muitas vezes autodestrutiva, movida pelo desejo e pelo interesse próprio.
O ser humano, na vasta maioria das vezes, age contra a lógica e os benefícios dela para sua própria situação apenas para afirmar sua liberdade de querer e realizar. Logo, o ser humano não é puramente racional, como defendem os racionalistas. Os seres humanos agem de maneira ilógica, imprevisível e incalculável movidos por desejo e consciência – essa é a verdadeira característica do ser humano.
Para concluir, o que vemos nessa obra é uma profunda crítica à utopia racionalista, como a do “homem da ciência”, completamente desprovido de desejos e vontades irracionais. Uma figura que acredita poder prever e controlar tudo por meio da construção de uma “razão pura”, como defendia Immanuel Kant.
Mas Dostoiévski nos mostra com o homem do subsolo que a alma humana é cheia de contradições, paixões e impulsos autodestrutivos que não se encaixam nesse modelo científico e pragmático. A razão pode, no máximo, nos tornar lúcidos e conscientes dessa natureza desejante, mas não pode fornecer as condições para a condução correta de nossa liberdade e de nossos desejos confusos e complexos.
Mas o que, então, poderia? A solução de Dostoiévski para a natureza humana marcada por contradição, sofrimento, culpa e desejo de liberdade não é científica, técnica e nem mesmo política: é espiritual. Para Dostoiévski, a única saída real para se emergir desse mar de contradições da experiência humana está na fé simples em Cristo. Com isso, Dostoiévski não rejeita a razão, mas a subordina à experiência moral e espiritual da fé em Jesus e da submissão a ele como modelo de humanidade.