Uma visão agostiniana da relação entre conhecimento e felicidade
“Escrevi primeiro os livros Contra Academicos ou acerca deles, com a finalidade de remover do meu ânimo, com quantas razões pudesse, os argumentos que ainda me fazem força, através dos quais tiram a muitos a esperança de encontrar a verdade (...)”.
– St. Agostinho, Retractationes.
Por Ana Clara Bessegatto[1]
O pensamento cético, embora desempenhe um papel importante na filosofia ao questionar as bases do conhecimento, enfrenta críticas contundentes. Etimologicamente, o cético é simplesmente alguém que indaga e reflete antes de afirmar ou consentir com algo. O termo vem do latim scepticus, e significa literalmente “aquele que reflete, que indaga”.
Apesar disso, o termo cético tem sido historicamente aplicado a escolas de pensamento que duvidam da possibilidade de atingir o verdadeiro conhecimento sobre as coisas, de modo que seja mais correto discorrer sobre “vertentes céticas”. Uma dessas vertentes é o ceticismo, que de forma radical questiona a possibilidade de qualquer tipo de certeza, incluindo as verdades mais básicas, como a existência do mundo externo ou a confiabilidade da razão. Essa postura, no entanto, se revela autocontraditória: para afirmar que “nada pode ser conhecido”, o ceticismo presume um conhecimento mínimo, o que mina sua própria posição.
Além disso, o ceticismo extremo pode ser criticado por sua esterilidade prática. Se nada pode ser conhecido com certeza, torna-se impossível justificar ou fundamentar ações ou decisões. A ciência, a moralidade e até mesmo a comunicação interpessoal dependem de algum grau de confiança em nossas faculdades cognitivas e em premissas compartilhadas. Ignorar essa necessidade não promove o progresso; pelo contrário, cria um impasse intelectual que pode ser mais destrutivo do que esclarecedor.
Outra crítica ao ceticismo é que ele confunde dúvida razoável com dúvida absoluta. Questionar o que sabemos é saudável e pode levar ao aprimoramento do conhecimento, mas rejeitar a possibilidade de conhecimento é diferente e possui várias implicações. Por exemplo, o ceticismo – no campo da teologia – é o grande promotor do agnosticismo. Se não se poder falar sobre verdades sobre nada, não se pode falar também no campo da teologia, seja para defender ou negar a existência de Deus.
Um importante filósofo cristão que foi capaz de refletir sobre os problemas e implicações lógicas e morais do ceticismo chama-se Aurélio Agostinho (354-430 d.C.), em sua obra Contra os Acadêmicos (387 d.C.). O texto da obra foi baseado nas conversas reais ocorridas no ano de 386, em Cassicíaco (uma vila próxima a Milão), entre Agostinho, Alípio (seu amigo), e dois jovens alunos do filósofo, Trigésio e Licêncio.
A discussão gira em torno da relação entre a felicidade e a situação da verdade diante da afirmação acadêmica da impossibilidade de se chegar à ciência das coisas. Se a felicidade depende de conhecermos e vivermos a verdade, mas a verdade – segundo os céticos – é impossível de ser conhecida, como o homem pode ser feliz? Não seria o ceticismo a filosofia da infelicidade?
É importante ressaltar que, por “afirmação acadêmica”, Agostinho se refere ao ceticismo da Nova Academia da Grécia Antiga, um grupo de filósofos que negavam a existência do conhecimento e que diziam que o conhecimento real é impossível. Era uma filosofia advinda da escola filosófica fundada por Arcesilau (315–240 a.C.) e ao qual precedeu Carnéades (214–129/128 a.C.). Agostinho conheceu as orientações desses filósofos através do livro Academica, do orador romano Cícero (106–43 a.C.).
Para demonstrar como é insustentável essa posição cética rigorosa dos acadêmicos e suas consequências nefastas, Agostinho focaliza no conceito de “erro” tão usado entre os céticos contra aqueles que duvidam de suas posições. “Onde”, argumenta o filósofo, “posicionam sua fortaleza os acadêmicos, cuja opinião defendes, a não ser na definição do erro?”. Erro pressupõe acerto, que por sua vez é a posição verdadeira sobre algum tema ou assunto. Se existe erro, existe acerto e verdade possível de ser conhecida.
Agostinho demonstra por meios lógicos que havia uma contradição explícita verificada nos conceitos dos acadêmicos, quando estes tentavam sustentar a posição cética rigorosa. Além disso, Agostinho amplia o problema para a esfera moral. Se não há verdade, não pode haver mentira; se não há acerto, não pode haver erro, e por consequência, todas as ações imorais poderiam ser justificadas pela premissa de que não se pode dizer se um ato moral é certo ou errado, verdadeiro ou falso. Certamente, o ceticismo também é um grande promotor do relativismo moral.
Concluindo, a visão agostiniana não só refuta a tese do ceticismo, como fornece aos filósofos uma base lógica para a defesa da possibilidade de conhecimento real sobre a verdade, que por sua vez pode promover a felicidade humana. Felicidade, na teologia agostiniana, é conformidade com a verdade, por meios lógicos ou pisticos (fé). Ser feliz depende de conhecer e viver a verdade, que por sua vez, encontra-se em filosofias bem construídas, como a de Platão – na visão de Agostinho – mas principal e definitivamente nas Sagradas Escrituras, como diz o filósofo patrístico: “Assim, já estou plenamente disposto e desejo impacientemente compreender o que seja verdadeiro, não só através da fé, mas também do intelecto. Nesse ínterim, confio poder encontrar junto aos platônicos um ensinamento que de modo algum destoa de nossas Escrituras Sagradas.” (2014, pp. 104-105).
AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2002.
PAPINI, Giovanni. Vida de Santo Agostinho. Companhia Nacional, 1960.
CLARK, Gordon H. De Tales a Dewey: uma história da filosofia. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2019.