Entre Linhas
As petecas e as memórias afetivas que crescem em nós
Já mencionei aqui que não sou muito ligada a datas comemorativas, mas, às vezes, a inspiração coincide. Na verdade, exterior a todos nós, existe um apelo midiático muito forte. De alguma maneira, creio que fui convidada, por essa inocente aura, a falar sobre o assunto que marca o mês.
O Dia dos Pais é uma das cinco datas comemorativas que mais vende no Brasil. Por essa razão, finalzinho de julho e começo de agosto, somos contagiados pela magia paternal. Assim, é natural que a lembrança de Painho em mim se achegue com mais intensidade.
Apenas para esclarecer, em 2025 faz 29 outubros que ele se foi. Mas, como essa escrita não se funda na ausência, sigo afirmando que ele me deixou memórias muito boas – mesmo aquelas que terminaram em dolorosa correção.
Trazendo mais informações nada aleatórias ao horizonte. Em abril, fomos com uns amigos para o interior do estado limpar os olhos e descansar a mente com deliciosas cachoeiras. Uiramutã é um lugar encantador e, por estar a aproximadamente 600 metros de altitude, o amanhecer friozinho aquece o coração. Em se tratando de Brasil, é o município com população mais jovem e mais indígena[1]. Esse fato por si só o faz especial.
E qual a relação entre Painho, que nasceu, cresceu e morreu no interior da Bahia com Uiramutã, no interior de Roraima? Já, já ligaremos os pontos. Como bem canta Lenine, “um pouco mais de paciência”.
Nessas viagens mais naturais, que vamos de carro próprio, levo quase a casa toda. Aliás, se pudesse, levaria minha casa mesmo. Como nossos amigos têm filhas e filhos adolescentes que, na medida do permitido por essa faixa etária, também são nossos amigos, levei uma peteca para brincarmos. Para minha surpresa, Lara, filha do Osvair e da Heila, também levou.
Entre um clarão e outro perto das cachoeiras, tentamos jogar um pouco – na medida que meu dolorido corpo permitia. Essas brincadeiras, em que o divertido é ver o “adversário” acertar, são incríveis. É bom quando o outro não é “outro”, mas sim continuidade de nós.
E foi pensando no acerto de Lara que eu recordei e reinsiro Painho nessa história. Das coisas que ele fazia pra gente brincar, a que mais está viva na minha quase parca memória é a peteca. Era divertido ver as penas voando de lá pra cá, de cá pra lá.
Painho não parou por aí, relembro o cata-vento pendurado no pé de laranja, o pião que ele mesmo esculpia e, como eu nunca tive força, ele lançava ao chão e fazia aquele cone com um prego na ponta rodopiar até dormir.
Para não esticar muito a paciência de vocês ou a lista de brinquedos memocriativos, encerro com o quebra-cabeça mais desafiador da minha infância: um pedacinho de madeira comprido e fino com três furos e um cordão. Este tinha cada ponta presa nos furos dos cantos. No meio, o cordão também se prendia à madeira através de um nó que só Painho sabia fazer. Em um dos lados do barbante, ficava um botão de costura que deveria ser movido de um lado para o outro, sem desfazer nenhum nó. Ficou confuso? O desenho pode ajudar.
Painho era um artista no sentido mais puro e original da palavra. Trazia cor e alegria aos meus dias infantis e, mesmo sem saber, me presenteava com memórias incríveis. Se havia adversidade, ele driblava com criatividade.
Foi anteontem que nasceu esse texto. Ao sentar no sofá e ver a peteca enfeitando a prateleira, tive que rapidamente esquematizá-lo. Daí lembrei que um dia desses, Lara e eu tentamos jogar tendo como pano de fundo as cachoeiras. Querendo acertar o espalmar das mãos, eu recordei que, em tempo e lugar distantes dali, foi Painho quem me ensinou a (re)bater com cuidado uma peteca como aquela.
RECEITA DE PETECA |
Modo de fazer |
Ingredientes Meia velha, areia fininha, pena “de galinha” e cordão. |
Pegue uma meia velha, mas sem furos. Faça um corte a +/- 6 centímetros da ponta onde ficam os dedos. Vai aparentar um saquinho, é ele que você vai usar. Coloque a areia dentro, mas não deixe ficar muito pesado. Em seguida, enfie as penas pela “boca do saco” até metade da areia. Amarre, sem dó, as penas com o cordão fechando a boca da meia-saco. Brinquedo pronto! |