A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Entre Linhas


Por: Jacilene Cruz
Data: 18/11/2024
  • Compartilhar:

“Escrevo com tinta preta as cartinhas do meu amor”

 

Não sou afeita a escrever sobre datas comemorativas. A prova disso é que meu último texto, Antes que outubro acabe, sobre as crianças, saiu no finalzinho do mês delas. A razão não sei. Talvez eu ainda precise me acostumar ao tempo dinâmico das crônicas. Talvez.

Hoje, estou entre fazer uma concessão e me adequar. Espero que até o final, consiga definir entre as duas ponderações. Por enquanto, estou certa de que essa escrita começou com um grande número de flexões na primeira pessoa do singular. Nós sabemos que muitos eus cansam, deixemos esse pronome de lado, ao menos por agora.

Essa semana que, de forma útil, acabou de começar, tem no seu meio um dia para a reflexão. Independente do credo, cor ou bandeira que levantemos, há necessidade de um momento para ponderar, estudar, considerar, ruminar, ter discernimento, tino, tento e maturidade para enxergar a importância do Dia da Consciência Negra.

E já adianto para vocês:

-A nossa consciência é um site que deve estar em constante manutenção.

Para ilustrar, sempre trago memórias para essa coluna – minhas parábolas. Coisas vividas que conseguiram driblar Cronos e serem atuais. Hoje não será diferente. É uma memória terna, a recebam com carinho.

A singular primeira pessoa voltou.

Aprendi a ler e a escrever lá na Dona Delza, mulher de voz firme e aguda, que fez de parte de sua casa uma escolinha. Não sei quanto era a mensalidade, mas Mainha se sacrificou e fui alfabetizada em uma escola particular. Esse fato foi um diferencial, mas não falarei sobre isso. Essa escrita, acreditem, não é sobre ou para mim, mas sim, sobre e para nós, a plural primeira pessoa.  

O lugar para o recreio era apertado e cheio de plantas. O pequeno quintal, onde corríamos, também funcionava como espaço para o canto teatralizado, quando os professores nos brindavam com aula ao ar “livre”.

Nos divertíamos com as cantigas, mas apenas uma ficou gravada na memória: 

 

Pretinho d’Angola[1]

 

Lá vem o pretinho d’Angola

Lá vem o pretinho d’Angola

Com seu chapéu chaleira

Tamanquinho à espanhola

Você me chamou de preto

Sou preto da linda cor

Escrevo com tinta preta as cartinhas do meu amor

Escrevo com tinta preta as cartinhas do meu amor

 

Fonte: Jacilene Cruz

 

Para a criança que fui, o Pretinho d’Angola era a pessoa mais linda do mundo (mesmo que eu não tenha a menor ideia do que seja seu “Chapéu chaleira” e o “tamanquinho à espanhola”) porque era preta a cor da tinta com que ele escrevia as suas cartas de amor.  

A matemática e a comparação foram, e ainda são, precisas e perfeitas: preta = amor; preta é a cor do amor. Expliquei nas duas matérias fundamentais, o resultado figurou na justa medida.

Abrindo parêntese: Ensinar com arte desperta o melhor do ser humano. Parêntese fechado.

Deixando as “gracinhas” de lado, a música abriu em mim, as portas para o desembrutecimento, para a humanização do que foi secularmente desalmado, animalizado.

Mas, como eu disse nos primeiros parágrafos, os mins cansam. Sendo assim, é fundamental darmos outro significado à história vivida por povos que trouxeram, sua arte, religião, trabalho e saberes.

Trouxeram, diga-se de passagem, sob a mira de armas de fogo, acorrentados uns aos outros, vendidos como coisas. Objetos de mercado, pertences sem nome, presenteados e passados de pai para filho. Por fim, tornaram-se refeição indigesta, apagamento.

Espero que tenham recebido esse final destoante do começo, mas consoante com o momento nada negro em que vivemos, com o mesmo carinho que recebem minhas velhas memórias. Há questões que não podem ser deixadas para trás, nem empurradas para adiante. O momento é agora e a consciência negra urge porque dos negros foram os direitos suprimidos.

Então, na dúvida entre a concessão e adequação, fiquemos com a escrita necessária.



[1] Não encontrei registros sobre a música, apenas um grupo folclórico mineiro cantando e performando. O que me levou a deduzir que, no mínimo, Pretinho d’Angola é conhecida entre Minas e Bahia. Disponível em: https://programaserelepe.blogspot.com/2020/03/pretinho-de-angola-grupo-serelepe-eba.html.

Jacilene Cruz


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.