A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Deus ordenou o apedrejamento em Deuteronômio 13.10?


Por: Fernando Razente
Data: 21/03/2022
  • Compartilhar:

A dúvida textual desta semana foi enviada por uma leitora que questionou a respeito do significado do texto de Deuteronômio, capítulo 13, versículo 10. Antes de explorarmos o sentido deste texto é importante considerarmos o seu contexto. O livro de Deuteronômio (c. 1405 a.C.) é um livro escrito por Moisés, como um tipo de revisão ampliada da Lei que Deus já havia dado ao povo, destinada à comunidade israelita que estava sendo preparada para uma nova vida: a entrada na terra prometida. Dificuldades e deserto ficam para trás; a conquista da terra prometida se mostra à frente. Neste livro, há um chamado ao povo da aliança para renovação do compromisso pactual com Deus e também para a preservação deste pacto naquela terra que passariam a habitar.

É muito importante considerar os destinatários imediatos deste livro: a nação de Israel. O conceito de nação aqui é fundamental para entender o capítulo 13. Deuteronômio foi escrito em um período onde o povo de Deus se organizava como uma nação e a maneira pela qual Deus foi serviço naquela época de levar adiante sua aliança e cumprir suas promessas foi por meio de uma nação. Contudo, Israel não existia mediante contratos sociais ou códigos éticos pragmáticos, mas a base constitutiva de seu ethos [caráter/identidade] político e sobrevivência física e espiritual enquanto nação, era o pacto com Deus firmado em sua Palavra escrita, a Lei.

Entenda isso: sem a Lei, Israel seria dissolvida. Por isso, a preservação da base constitutiva da nação de Israel [a Lei] era de suma importância. Isso implicaria que qualquer ameaça contra os imperativos da Lei de Deus era equivalente a ameaçar destruir a identidade nacional de Israel enquanto comunidade pactual. Por isso, neste livro que prepara o povo para uma nova fase, Deus faz sérias advertências contra todo o pecado que envolvesse diretamente o menosprezo, a distorção, a corrupção ou o abandono da Santa Lei e consequentemente a corrupção da comunidade pactual.

No capítulo 13 deste livro, o perigo apresentado contra a graciosa aliança firmada na Lei é a idolatria e a religião estrangeira, que se tornam o foco da atenção principal deste texto. O capítulo pode ser dividido em três seções que especificam as principais pessoas ou grupos que podem ser fontes de tentação aos israelitas: 1) Líderes religiosos: falsos profetas ou sonhadores (v. 2–5); 2) Família imediata: vários parentes próximos (v. 6–11); e 3) Revolucionários urbanos: grupos de homens que procuram minar o compromisso pactual com Deus de toda uma cidade (v. 13–18).

Na segunda seção, Deus declara que a penalidade legal a ser observada para com aqueles que eram da própria família ou parentes próximos, mas que queriam afastar os israelitas de seu compromisso com Deus de modo resoluto e constante os instigando a servir deuses pagãos e estranhos, era a morte: “(...) mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-ás até que morra, pois te procurou apartar do Senhor, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão.” (Dt 13. 9-10).

Quando o texto diz que a mão do acusador “será a primeira contra ele (acusado), quer dizer que a pessoa que denunciasse o crime deveria lançar a primeira pedra contra o acusado. Então, o restante da comunidade israelita se juntaria a ela, apedrejando o ofensor até a morte. O procedimento da execução é importante: lançando a primeira pedra, o denunciante do crime assumiria a responsabilidade pela execução, simbolizando, desse modo, que a evidência que apresentou para a execução era verdadeira.

Entretanto, o acusador não arcaria sozinho com a responsabilidade, pois, após a primeira pedra, a comunidade do pacto compartilharia da execução: e depois a mão de todo o povo”. Isso simbolizava a unidade nacional e religiosa dos israelitas no zelo pela Lei e sua continuidade. Assim, era apropriado que a comunidade participasse da execução. Por mais terrível que fosse a natureza do crime, a participação na execução (particularmente se o ofensor fosse um amigo ou um parente) seria uma experiência terrível e horrível e isso teria um papel preventivo: o de lembrar ao povo as consequências de se quebrar o primeiro mandamento (Êx 20.1-3) não tanto as consequências para o ofensor, mas as consequências potenciais para todo o Israel.

Assim, a natureza da punição era destinada, em parte, a prevenir o povo contra, no futuro, fazer alguma coisa semelhante a isso em Israel. Como o teólogo João Calvino (1509-1564) comenta esta passagem: “(...) enquanto a punição foi infligida ao crime de um homem, todos os outros foram inspirados pelo terror; e assim a morte de um é uma disciplina saudável para todos, a título de exemplo.”

Para a nossa mentalidade ocidental pós-moderna e ideologicamente pacifista, as penalidades legais observadas neste capítulo podem ser vistas como sendo extremamente cruéis e injustas, mas deve-se observar que a razão para tal severidade está na natureza do crime. Muitos de nós damos pouca importância para a seriedade e o terror do pecado, e por isso achamos um exagero o zelo de muitos santos do passado, como o caso de Finéias (Números 25). Mas, lembre-se que a existência continuada da comunidade pactual de Israel como povo santo da aliança dependia, literalmente, da lealdade ao Senhor da aliança.

Assim, o crime de incitação à idolatria naquela época era um dos mais hediondos, dado os seus efeitos sobre o bem-estar de todo o povo de Israel como comunidade pactual. Como aponta o comentarista bíblico Peter Craigie (1938-1985): “De todos os crimes potenciais no antigo Israel, o descrito nesse capítulo [capítulo 13] era o mais perigoso em termos de suas ramificações gerais: tentar deliberadamente minar a lealdade a Deus era a pior forma de atividade subversiva, no sentido de que isso corroía as bases constitutivas da nação. Em suas implicações, o crime seria equivalente ao de traição ou espionagem em tempos de guerra.” (2013, p. 238).

 

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.