A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Como matar o Natal?


Por: Fernando Razente
Data: 19/12/2022
  • Compartilhar:

O poeta Owen Barfield (1898-1997) e o escritor Walter Hooper (1931-2020) organizaram uma coleção de ensaios e críticas literárias de C. S. Lewis (1898-1963), intitulada de On Stories: and other essays on literature (1966). A obra foi publicada no Brasil pela editora Thomas Nelson Brasil em 2018, e leva o título simples: Sobre histórias.

No capítulo 15 da obra, o professor C. S. Lewis escreve sobre o que ele chamou de “A morte das palavras”. Neste ensaio, o antigo docente de literatura inglesa da Universidade de Oxford mostrou como, ao longo do tempo, algumas palavras — devido à falta de rigor histórico-semântico — perdem completamente o significado essencial, levando eventualmente à sua morte.

Sim, palavras morrem. E morrem de uma doença chamada “abismo elogioso”. O que seria isso? Lewis utilizou o exemplo do termo “cavalheirismo”. Ele argumenta: “Esse foi, em algum tempo, um termo que definia um fato social e heráldico.” Porém, como o argumento prossegue demonstrando, “cavalheirismo” se tornou com o passar do tempo uma palavra “[...] meramente elogiosa, e as qualidades em que se baseava o elogio variavam de um momento para o outro, inclusive na mente do mesmo falante. Essa é uma das maneiras pelas quais as palavras morrem.”

Por “meramente elogiosa”, Lewis está querendo dizer que, por arbitrariedade e descuido do falante, uma palavra que antes detinha um sentido específico e um contexto histórico fixo, é arrancada de seu meio e assassinada para, como um cadáver que só possui corpo, ser o emblema externo de uma coisa completamente diferente do que era na essência.

Qual o resultado social dessa morte das palavras? A corrupção da realidade. Se palavras são — como defendia St. Agostinho (354-430) em seu clássico De Magistro (389) — “sinais”, no sentido de apontarem para uma dada interpretação da realidade, corromper os sinais é corromper a própria realidade.

Estou preocupado com isso, especialmente quando ouço a palavra “Natal” atualmente. O teólogo e pastor americano Timothy Keller em seu livro Hidden Christmas (2016), nos mostra que o Natal é o único feriado que contém “[...] duas celebrações distintas, cada qual observada por milhões de pessoas ao mesmo tempo.” Isso tem uma razão.

A primeira celebração respeita adequadamente o berçário histórico do termo e sua referência original: é o Natal com N maiúsculo, o Natal cristão, que comemora o nascimento de Jesus Cristo, o Messias de Deus, que nasceu na cidade de Belém, no território da Palestina, há 2000 anos.

A segunda celebração, a qual Keller chama de “secular”, é aquela que evita “[...] de propósito quaisquer referências a suas origens cristãs.” Para essa segunda celebração, o Natal é simplesmente uma “época de luz”, um “momento de caridade”,  um “espaço de familiaridade e fraternidade” sem qualquer conotação religiosa. Para os secularistas que assassinam o termo, nas palavras de Gawker, o “[...] Natal é um feriado secular maravilhoso”, e só.

Por isso, aos poucos, com a cultura secular em voga, a palavra “Natal” vem morrendo nesse abismo elogioso, que retira dela seu significado histórico e teológico, e a usa como um mero termo mercadológico e positivo para expressar “coisas boas e legais da moda pós-moderna”. Eles verdadeiramente encarnam o espírito de Humpty Dumpty, o personagem do romancista Lewis Carroll (1832-1898), que faz as palavras significarem exatamente aquilo que ele deseja que signifique.

Desta forma, assim como os termos “cavalheirismo”, “burguês” ou “bastardo”, o termo “Natal” vem perdendo completamente sua vitalidade histórica e seu significado especificamente cristão, definhando até morrer nos meros cartões vermelhos de comemorações de fim de ano.

Mas isso realmente importa? Creio que sim. Não é dever somente de historiadores e filólogos resgatar o sentido correto de cada termo, mas também de cada indivíduo que ama as palavras e sua língua, especialmente aquelas palavras que representam tanto para nós como o “Natal”. Porém, como podemos resgatar o Natal do terrível “abismo elogioso”? Como podemos preservar o Natal de perder seu sentido histórico? Como podemos evitar que o termo “Natal” morra, e se torne em apenas um bonito elogio do que uma referência à vinda histórica e real do Salvador pela virgem Maria?

Acredito que a solução deva começar com um poenitentia christianitatis [arrependimento da cristandade], pois a corrupção das palavras infelizmente tem como grande responsável aqueles que deveriam ser os guardiões dela. Se a cristandade de maneira geral se esforçasse mais para preservar, em suas conversas e suas interações sociais, o verdadeiro significado do termo “Natal” e se negassem a se entregarem às declarações vazias, vagas e secularistas de que o Natal é um mero tempo de paz e luz, certamente teríamos um caminho mais seguro para salvar essa palavra tão doce da sua trágica morte social.

 

“ — Mas “glória” não significa “um argumento arrasador” - objetou Alice.

— Quando uso uma palavra - disse Humpty Dumpty em tom escarninho -, ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique… nem mais, nem menos.”

Alice através do espelho, de Lewis Carroll (1871)

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.