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“Roteiros para uma vida curta”, de Cristina Judar


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 28/01/2021
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“Roteiros para uma vida curta”, de Cristina Judar

Cristina Judar. Roteiros para uma vida curta. São Paulo: Reformatório, 2015.

1º Dia

            O que seria um roteiro para uma vida curta? Uma série de fórmulas para abreviar o tempo de duração de uma vida que, perto do universo, é por si só curta? Uma apologia ao suicídio, quem sabe? Ou perspectivas capazes de tornarem curto o sofrimento? Ou nada do que foi dito até agora tem a ver com o “roteiro para uma vida curta”, de Cristina Judar? O mais provável é esta última opção, já que a cronista não está preocupada com questões de ordem transcendental, mas de observar a vida em seus aspectos mais simples, inclusive banais. É contra – e em crítica! – a justificações extrínsecas que lemos na crônica “Bem-vinda ao mundo das nuances” a seguinte ideia:

 

Aliás, de onde você tirou esse conhecimento? E não comece com papos místicos de sabedoria de memórias passadas, já passei dessa fase, um dia você também passará, isso é herança das minhas quase quatro décadas vividas. Resta sempre certa amargura de esoterismos vividos na juventude, e vê se tira essa sua pele de perto dos meus domínios. E não me venha com olhos esfumaçados por detrás de mesas de bares. E pare de emitir essas ondas curtas de raios ultravioleta, que batem nas minhas fronteiras em movimentos constantes. Pois tenho medo de me perder. Agora, só tenho o nada. Ele me rodeia, branquinho. Assim como deve ser a morte (JUDAR, 2015, p. 55-56).

 

            A escrita de Cristina Judar não está preocupada com grandes problemas, como: para onde vamos? de onde viemos? ou qualquer outra coisa do gênero. É preferível para a cronista falar do dia a dia. E como há assuntos para falar do dia a dia! Entretanto, é justamente o cotidiano, foco dos cronistas, que de tempos em tempos lhes emudece. E o cotidiano deixa mudo não só os cronistas, mas também os poetas. Antes de continuar a leitura de “Roteiros para uma vida curta”, um alerta: percebi que este parágrafo é quase uma repetição do anterior. Sorte a minha que fui alertado por Judar acerca da repetição: “[suspiro] o porquê das pessoas procurarem tanto a condensação de si mesmas. por isso repetem tanto o que falam” (JUDAR, 2015, p. 11).

Para continuar a leitura, cabe destacar agora o poder do silêncio. Esse silêncio é tanto porque o escritor não tem mais o que dizer, porque já disse muito, e porque se reconhece ínfimo diante da existência. O poeta Sérgio Rubens Sossélla alertava: “o vazio é tudo./ tanto que escrevi e repentinamente me vejo mudo” (SOSSÉLLA, 2000, p. 134). Judar, por sua vez, escreve: “[silêncio] prefiro a grandeza de ser onda magnética, calafrio, raio fluorescente, clave de fá, olhares integrais, intervalo, telepatia pura. nada de massas sensíveis ao tato, ou de matéria a bloquear vias e ritos de passagem – por isso, quanto a falar, apenas o estritamente necessário” (JUDAR, 2015, p. 11-12).

            E qual o sabor da escrita da cronista? É do tipo de alimento que se come pausadamente? Que só pode comer uma só colher? Essas perguntas não têm respostas unânimes, mas, para mim, é um alimento que se come bastante e em uma só sentada (li mais de 100 páginas do livro em um só dia, mas queria ter lido tudo de uma só vez!). E de quem a cronista está a falar? De si? De alguém em especial? De alguém não tão especial assim?  Para recorrer uma vez mais a Sossélla (1996): “- ¿ E esse texto?/ - Já li em alguém e sublinhei”. E no que tange à Judar, é possível dizer que ela fala de si, dos outros e até de algo “Inclassificável” (título de uma de suas crônicas):

 

Ouvir as memórias de um abajur. A mulher pergunta-se se é verdadeira a afirmação de que os objetos podem ter memória. Depositários de sentimentos e fatos ocorridos em um raio de até cinco metros. Calados e imóveis, a reter diálogos e acontecimentos. Uma ideia sem fundamento, absurda para os seres comuns, mas não para ela, tão familiarizada aos conceitos divulgados nos meios esotéricos, como aquele sobre os registros akashicos: partículas flutuantes no tempo e espaço, núcleos de vida e história, desde o início dos tempos (JUDAR, 2015, p. 51).

 

2º Dia

            Mas, que ninguém se iluda: não é porque a escritora fala do cotidiano que ela deixa os pés amarrados à terra, como se tivesse enraizada. Isso, porém, não é um apelo à abstração ou algo metafísico, mas que ela, cronista, está além da terra e do imediatismo (eis que a repetição do início desta resenha retorna). Na verdade, o fato é que não é possível emitir juízos categóricos sobre “Roteiros para uma vida curta”, por isso que deduzo que o que é lido está além do imediatismo, e isso faço com base na crônica “Jardim de Begônias”: “Sempre tive a desconfiança de ser mais deus do que homem. Falar o quê de alguém com pés que não tocam o chão simplesmente por não o sentirem, pés incapazes de vibrar com as batidas dessa terra, do coração que pulsará até o instante de sua morte” (JUDAR, 2015, p. 109-110).

 

            Porém, como tudo tem um porém, o livro de Judar resvala em alguns lugares que têm se tornado comuns na literatura (talvez porque ela opte deliberadamente por esses lugares?). Palavrões (ainda que não constantes) e ironias ao cristianismo são presentes, como nas crônicas “Rosário”, “Frio de lápide” e “Nada originais”, e isso às vezes cansa a leitura (ao menos a minha, mas, quem sou eu, afinal?). Há formas de profanar sem vulgarizar, como no célebre musical “Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat”, de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Porém, novamente o porém, talvez seja intenção da cronista vulgarizar, já que no dia a dia sobejam xingamentos e correlatos e mesmo motivos para xingamentos – e essa intencionalidade seja estratégica. De toda forma, como dizia Sossélla ao criticar o amigo Leminski, uma crítica não ofende ou diminui um bom escritor.

Dr. Felipe Figueira

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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