“Baratas”, de Scholastique Mukasonga
O livro da autora ruandesa, Scholastique Mukasonga, há décadas naturalizada francesa, inicia-se com a seguinte dedicatória:
“A todos que pereceram no genocídio em Nyamata,
a Cosma, meu pai,
Stefania, minha mãe,
Antoine, meu irmão e seus nove filhos,
Alexia, minha irmã, seu marido, Pierre Ntereye,
e seus filhos,
Jeanne, minha irmã caçula e seus filhos,
Judith e Julienne, minhas irmãs e seus filhos.
A todos aqueles de Nyamata que são citados neste livro,
e a todos aqueles, mais numerosos, que não o são.
Aos raros sobreviventes que carregam a dor de sobreviver.”

É impossível não ter um choque logo nas primeiras linhas da obra, porém, ele era previsível, afinal, em “Baratas”, Mukasonga tratará da história dos conflitos entre tutsis e hutus, culminando no genocídio dos tutsis em 1994. Oitocentas mil pessoas morreram em apenas cem dias. A quem assistiu ao filme “Hotel Ruanda” ou viu as fotografias de Sebastião Salgado, presentes no livro “Êxodos” e que seguem ao longo deste texto, tem uma noção aproximada do que foi a catástrofe no país africano, mas, o livro vai além. Muito além.
Mukasonga, que exerce a profissão de assistente social na França, antes de chegar à barbárie de 1994, ela reconstrói uma parte da tragédia em Ruanda no século XX, indo desde 1950, passando pela década de 1960, a criação do termo “baratas” (“inyenzi”), os refúgios em Burundi, país vizinho, até a instabilidade política total e o abandono da comunidade internacional acerca dos ruandeses.

Em julho já havia mais de 13.000 mortes, com altíssimas taxas de mortalidade a cada dia em Goma. O Médico Sem Fronteiras (MSF) trabalhava principalmente em dois eixos: o controle das epidemias de cólera e disenteria e o fornecimento de água potável. Também foi iniciado um programa de apoio ao orfanato.
Mais do que contar, o que Mukasonga faz é mostrar. Ela não desfila teorias em “Baratas”, mas, mostra o dia a dia de Ruanda, em especial o de sua família, até que tudo é devastado. Ela mostra a ação do presidente hutu Grégoire Kayibanda (líder da Revolução Ruandesa), a vida religiosa do seu povo e as dificuldades que tinha para estudar, a ponto de dizer: “Às vezes eu sonhava o impossível: ter um livro só para mim.” (MUKASONGA, 2023, p. 52).
A autora também mostra como que o pai, que trabalhava com contabilidade, teve que se sujeitar a todo tipo de trabalho e de escárnio para colocar comida dentro de casa; às vezes, inúmeras vezes, a comida era tão somente batata-doce. E ela mostra, ainda, o zelo do irmão mais velho, Antoine, para cuidar da família na ausência do pai, que teve que ir para longe de casa para trabalhar. No último capítulo, “2004: na estrada do país dos mortos”, a autora faz uma homenagem das mais bonitas e tristes ao seu irmão-pai. Eis alguns trechos:
“Quando penso em Antoine, não me ressinto apenas do sofrimento: sou tomada de cólera. Antoine, o sacrificado. Aquele que se sacrificou por nós. Coube-lhe o papel do mais velho, do guardião da família. Judith tinha partido há muito tempo. Nunca a vi em casa. Quando fomos deixados em Nyamata, ele estava só. André rapidamente retomou a vida escolar, partiu para Zaza. Meu pai estava absorvido pelos problemas do acampamento dos refugiados. Confiavam nele nas negociações com as autoridades, na resolução dos conflitos. Nem sempre ele podia estar junto à família. Só havia Antoine para ajudar minha mãe nas tarefas cotidianas. Eu tinha quatro anos, Julienne, alguns meses. Minha mãe estava grávida de Jeanne.
(...)
Minha mãe estava enganada. Antoine, sua mulher, Jeanne, e seus nove filhos, todos foram mortos. E deles não resta nada além de um nome gravado em uma cruz sobre um túmulo. Caminho só, no matagal inextricável daquilo que foi sua casa. E sou tomada pela cólera. Por que esta vida desperdiçada por nós? Esta vida sacrificada em vão? Antoine, Jeanne, os nove filhos, mais nada.” (MUKASONGA, 2023, p. 167-170).
Da família de Mukasonga, no caso, dos irmãos, somente ela e André escaparam aos facões hutus. Ela foi para o Burundi e, por ter se casado com um francês, tornou-se cidadã do país europeu. Já o irmão fez Medicina no Senegal. Foram os dois, depois de 1994, os responsáveis por acolher os pedaços que sobraram da família, no caso, um ou outro sobrinho que sobreviveram ao genocídio.
Em “Ilíada”, de Homero, Nestor tem uma fala que deveria repercutir para a eternidade, mas que, infelizmente, não repercutiu: “Homem sem raça, sem lei e sem lar é aquele/ que ama a guerra terrível entre o seu próprio povo.” (HOMERO, 2013, p. 291). O fato é que em 2025 o que se vê aos montes é pessoas e governantes instigando o ódio, o que pode levar a medos e a mortes (in)imagináveis.

Ruanda, 1994
Ao terminar “Baratas”, a sensação foi a pior possível, como se eu próprio tivesse sido pisado. É certo que é impossível eu afirmar que sei o que Mukasonga passou, pois eu não perdi nenhum familiar para os facões, mas, por meio das palavras da escritora, eu pude me colocar em sua pele por segundos, e, com isso, posso clamar pela paz. É preciso buscar a paz.
Scholastique Mukasonga. Baratas. Trad. de Elisa Nazarian. São Paulo: Editora Nós, 2023.
Homero. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.