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Machado de Assis. “A igreja do Diabo”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 27/02/2025
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Disse o diabo:

“Há muitos modos de afirmar: há só um de negar tudo.”

(ASSIS, 2015, p. 183).

Um dos textos que mais gosto de Machado de Assis é “A igreja do Diabo”. Tenho a impressão de que nele há a essência da ironia machadiana, pois o escritor consegue levá-la a um nível metafísico (demasiado humano) entre Deus e o Diabo. Se entre Deus e o Diabo há fortes elementos irônicos, o que pensar das relações humanas?

Quanto a Machado, lembro-me de ter sido iniciado à sua leitura em 2003, no primeiro ano do ensino médio, por intermédio do professor Sebastião Soares de Castro, na disciplina de Língua Portuguesa. Gostei de imediato de “Memórias Póstumas”, “Dom Casmurro” e “O Alienista”. Na época, comprei “Dom Casmurro”, que veio acompanhado de um CD, o que me deixava horas e horas envolvido com aquela história.

Quanto ao conto aqui em questão, trata-se, em síntese, do desejo do Diabo em ter uma igreja para si. Ele, que trabalhara disperso por milênios, queria agora se organizar, por meio de uma igreja, que teria livros e mandamentos. A ideia era simples: se disperso conseguiu muito lucro, muito mais conseguiria organizado. Para tanto, foi comunicar a sua ideia a Deus:

- (...) Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em suas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece? (ASSIS, 2015, p. 184).

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas d sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram os mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. (ASSIS, 2015, p. 185).

A quem ler as palavras do diabo e as considerar brilhantes e originais, que repense o que entende por brilhantismo. E por quê? Porque os serafins, Miguel e Gabriel, e mesmo um ancião que estava com Deus, pronto para ir para o céu, se entediaram. Disse Deus:

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. é assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. (ASSIS, 2015, p. 185).

Largo do Machado

E realmente é vulgar e simplista o pensamento do Diabo. Erich Fromm, em “Ter ou Ser?”, explica que quem quer ter coisas, a hora que as tem, muitas vezes as descarta. É o caso de quem não quer uma casa ou um carro, mas o dinheiro que estes bens simbolizam: tão logo os possuem, passam para frente, nem que seja passando alguém para trás.

O fato é que o Diabo criou a sua igreja e ela prosperou. São essas as virtudes incentivadas pelo Diabo:

·       Soberba

·       Luxúria

·       Preguiça

·       Avareza

·       Inveja

·       Cólera

·       Gula

Além dessas virtudes, é preciso dizer que o paraíso seria na terra. Nada de promessas futuras, a questão seria o aqui agora. Nada de amar o próximo ou tudo o que está distante, antes, que existisse um culto a si próprio, por meio da vaidade (o que combina com o filme “O advogado do diabo”, que termina com as seguintes palavras: “A vaidade é, definitivamente, meu pecado favorito”.)

Contudo, como já haviam indicado os serafins, Miguel e Gabriel, nada é tão simples como poderia parecer. Nem o mal é só mal. Traduzindo: aos poucos, os discípulos do Diabo começaram, ainda que secretamente, a praticar boas ações. Quão surpreso ficou o Diabo com isso, afinal, se agora o mal era livre e incentivado, por que, então, a mudança de comportamento? Incomodado, o Diabo foi conversar com Deus, e este simplesmente disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tudo? é a eterna contradição humana. (ASSIS, 2015, p. 190).

E agora? O que acontecerá com o Diabo?

Machado de Assis. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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