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Conhecimento e autoridade em “Morangos Silvestres”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 11/10/2023
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“Morangos Silvestres” é um filme de 1957 de Ingmar Bergman (1918-2007). Trata-se de uma obra cheia de flashbacks sobre o médico e professor Eberhard Isak Borg, um homem de setenta e oito anos que receberá um título honorífico na Catedral de Lund em razão de seus méritos científicos. Com algumas ressalvas, o professor Borg faz lembrar o Fausto de Goethe, pois tanto um quanto outro são médicos, eruditos e solitários.

         Logo no início da película, o professor Borg declara: “Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. (...) Sempre trabalhei muito, e sou grato por isso. Comecei a trabalhar para sobreviver e acabei amando a ciência”. A imagem do professor é a de um erudito, alguém que se dedicou inteiramente à ciência e que vê no conhecimento a marca de todo bom profissional. O reconhecimento que receberá da Universidade de Lund é consequência de sua excelência laboral.

         Sem entrar nos méritos mais profundos do texto “A crise na educação”, da pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), a marca do intelectual é justamente o domínio da área para qual foi formado. Não adianta margear, no caso de um médico, não aprofundar disciplinas como anatomia, patologia e cardiologia, e ficar só voltado a princípios de interação comunitária sem ter conhecimento algum. Mais do que o filme “Patch Adams” (1998), é preciso conhecer quem é Hunter Doherty, que gostaria que a película baseada em suas experiências fosse “mais inteligente” e não “comercial”.

         Com essas críticas significa que um médico não deve conhecer a sociedade e a realidade dos pacientes? Claro que não, porém, não deve jamais esquecer que os pacientes precisam de um médico que domine a área para a qual foi formado. Um médico da família deve conhecer a comunidade que trabalha, mas sem se esquecer da farmacologia. É essa uma das lições de Julia Rocha, em seu livro “Pacientes que curam: O cotidiano de uma médica do SUS”.

         Em matéria educacional, e isso para seguir na senda aberta por Arendt, um dos aspectos que vieram à tona com a crise na educação tem a ver com o ensino. Nas palavras da filósofa: “Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada” (ARENDT, 2009, 231).

         O professor sempre foi visto como alguém responsável pelo mundo porque ele possuía o conhecimento do passado, daquilo que de mais fundamental foi produzido pela humanidade. Se ele não tiver esse conhecimento, de que servirá esse profissional ou qualquer outro? O fundamento da autoridade docente vem do conhecimento.

         Por mais que seja possível observar uma série de valores positivos em torno do professor Borg, um acadêmico brilhante, e a associação entre conhecimento e docência seja explícita, o médico não é alguém de fácil convívio. Nesse sentido, o diálogo com a nora, Marianne:

“- O que tem contra mim?

- Quer uma resposta sincera?

- Quero.

- É um velho egoísta. Não tem consideração, e só ouve a si mesmo. Mas, esconde bem isso atrás de sua civilidade e seu charme. Mas é egoísta, apesar de ser chamado de grande amigo da humanidade.”

         Todavia, que ninguém se engane e nem caia na seguinte armadilha: o intelectual não é sinônimo nem de turrão e nem de misantropo. A consequência de tal crença é a de que o estudioso viveria em um mundo à parte e que, por conta disso, seria antidemocrático, autoritário. Fruto desse falso raciocínio poderia surgir algo perigoso, também denunciado por Arendt: o intelectual deveria ter a sua formação afrouxada, e isso em nome de uma pretensa liberdade (“Psicologia moderna e princípios do Pragmatismo”) na qual todos – inclusive e a começar pelas crianças – poderiam fazer o que quisessem, pois, do contrário, seria autoritarismo.

         Acontece que a partir do afrouxamento anterior uma das consequências é que a segurança do saber pode ir embora, pois quando ninguém é responsável por ninguém uma crise é mais do que evidente. O conhecimento é cheio de lacunas? Sim, disso nenhum cientista duvida. Mas, isso não implica relativismo, descompromisso com o mundo, um lançar mão da própria responsabilidade para com o mundo.

         Os filmes de Bergman, desde “Crise” (1946) até “Saraband” (2003), têm como característica um forte teor psicológico. Em “Morangos Silvestres” não é diferente. O cineasta sueco não à toa é considerado o “cineasta da alma”, pois buscou compreendê-la nos mínimos detalhes e nas camadas mais profundas. Ironicamente, o professor Borg não ligava para os sofrimentos da mente, dizendo que isso era tarefa dos psicanalistas. Acontece que na película de 1957 um pesadelo do médico desencadeia a história e, através de uma viagem de Estocolmo a Lund, feita de carro, o professor revisita sua história e seus abismos.

         Por mais secundária que seja na história do filme a relação entre conhecimento, pesquisa e magistério, é justamente essa relação que dá início e fim à obra, sem a qual o professor não teria feito uma viagem a si mesmo até Lund.

 

Morangos Silvestres (no original em sueco: “Smultronstället”)

Ano: 1957

Direção: Ingmar Bergman

Elenco: Victor Sjöström, Bibi Andersson, Ingrid Thulin

Gunnar Björnstrand, Max von Sydow

Gênero: Drama

 

 

 

 

 

 

 

Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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