“Minha vida e minhas ideias”, de Albert Schweitzer
Albert Schweitzer é uma pessoa extraordinária e um pensador poderoso. Pessoa extraordinária porque fugiu do ordinário, e pensador poderoso porque é de uma erudição que raramente se vê nos próprios pensadores. Aspecto pessoal: tinha tudo para seguir a vida como professor de uma renomada universidade, a de Estrasburgo, e de se tornar uma referência religiosa. Aspecto intelectual: era músico, filósofo e teólogo; era construtor de órgãos e conheceu vários expoentes intelectuais da Europa. No entanto, como ele próprio confessa em “Minha vida e minhas ideias”, ele precisava fazer algo diferente, no caso, precisava prestar um serviço mais prático à humanidade, como uma espécie de compensação à sua vida tão feliz. Foi a partir dessa visão de mundo que ele fez medicina, em suas palavras, para praticar a caridade de modo mais direto, e, após concluído este curso, ir à África praticar a medicina na “selva” do Gabão.
Todavia, que ninguém veja o modo de ser de Schweitzer como heroico ou como alguém que teve uma vida extraordinária porque queria uma vida extraordinária. Ao seu ver, conforme veremos abaixo, ele era apenas um cumpridor de um chamado, de um dever. Ele fez do extraordinário algo ordinário, pois só assim a vida passa a ser de fato vida. mesmo sendo alguém mundialmente renomado, com obras traduzidas para vários idiomas (sejam elas de teologia, filosofia ou música), o pensador passava o dia entre consultas, cirurgias e muitos trabalhos braçais. Vamos às palavras de Schweitzer que sintetizam este parágrafo:
Como homem de atividade individual, frequentes vezes tenho sido consultado por outros que alimentavam ideias semelhantes. Só em relativamente poucos casos tenho assumido a responsabilidade de animá-los efetivamente. Amiúde pude verificar que a necessidade de “fazer algo especial” nascia apenas de um espírito inconstante. Pretendiam dedicar-se a tarefas maiores, porque não lhes bastavam aquelas que lhes eram atribuídas. Eram também frequentes os casos em que sua decisão era determinada por ponderações completamente secundárias. Somente àquele, que sabe descobrir um valor em toda e qualquer atividade e a ela se entrega com plena consciência do dever, assiste o direito interior de escolher como objetivo uma atividade extraordinária em lugar daquela que lhe coube naturalmente. Somente aquele que considera seu plano como algo perfeitamente normal, e não como algo extraordinário, e que não procura heroísmo mas apenas um dever a ser cumprido com um misto de bom-senso e entusiasmo, somente esse possui a faculdade de ser um desses desbravadores espirituais de que o mundo tem necessidade. Não há heróis da atividade; há somente heróis da renúncia e do sofrimento. Mas poucos deles são conhecidos, e ainda assim não à massa, mas só a alguns (SCHWEITZER, p. 97).
Quem ler as obras do mestre alemão hoje pode até se incomodar com os termos “primitivo”, “selva”, “selvagem”, dentre outros. No entanto, que ninguém se esqueça, em primeiro lugar, que esses eram termos comuns no início do século XX, mas, mais do que isso, Schweitzer não via os nativos do Gabão como seres a serem explorados, seja pela economia, seja pela religião. Por mais que o médico tenha ido à África enquanto um missionário, seu trabalho, antes, era humanitário e independente. Para essa simples constatação, basta a leitura da fascinante obra “Entre a água e a selva”.
Outro aspecto que Schweitzer considerava era que o seu serviço médico (ele criou um hospital em Lambaréné que até hoje funciona) não era mais do que uma parca compensação pelo desfavor feito pelos brancos europeus ao longo de séculos naquele continente. Infelizmente, ainda, a lógica ocidental, além de criar ideias desfavoráveis aos povos originários, também motivou guerras, sendo estas daninhas em todos os sentidos. É com esse sentimento, de declínio da civilização, que o pensador escreverá o livro “Filosofia da Civilização”, obra monumental que perpassa a história intelectual do Ocidente, mas não só, indo também às esferas religiosas e filosóficas do Oriente. Não custa dizer, enquanto historiador que sou, que essa obra foi escrita no contexto da I Guerra Mundial, sob toda dificuldade possível para ser elaborada, pois Schweitzer se tornou prisioneiro de guerra e teve que entregar esse livro para um amigo esconder. Por que Schweitzer não é estudado em cursos de filosofia e história? Por que poucos acadêmicos ouviram falar do seu nome? Eis perguntas que devem ser respondidas e currículos redefinidos em suas bibliografias e mesmo missões.
Também não custa lembrar que Schweitzer venceu o Prêmio Nobel da Paz de 1952. Além disso, como citado por cima nas linhas desta resenha, ele conviveu com vultos intelectuais e com celebridades, sendo possível mencionar, na parte musical, Cosima Wagner, esposa do grande músico alemão. Alguém que lesse esta resenha a partir deste parágrafo poderia pensar: “que privilegiado”, “que vida fácil e feliz”. É até possível dizer “que privilegiado” e “que vida fácil e feliz”, mas, nem por isso, não foi uma vida repleta de renúncias (uma das faces da liberdade), de dificuldades e infelicidades. Sobre otimismo e pessimismo comentou o pensador: “À pergunta sobre se sou pessimista ou otimista respondo que meu entendimento é pessimista, e minha vontade e esperança são otimistas” (SCHWEITZER, p. 248).
Toda pessoa que encontra o seu chamado interior e o atende sabe que o caminho a percorrer será árduo e que será tachado tantas vezes de louco e de tolo. Schweitzer não fez medicina por causa do dinheiro, mas para colocar a caridade em prática, como ele próprio assinalou. Schweitzer, aos 30 anos, deixou a sua zona de conforto (filosofia, teologia e música), cursou medicina e, após, ainda fez doutorado nesta área. Caso ele tivesse feito essa conversão profissional para “ganhar dinheiro” muitos entenderiam, mas, como não era o caso, ele só poderia ter “perdido o juízo”. Todavia, o filósofo sabia bem o que fazer e isso lhe era motivo de felicidade:
Quando o homem se torna consciente do mistério de sua vida e das relações existentes entre a sua vida e a vida que enche o mundo, não poderá senão tributar respeito tanto à sua própria como a toda vida com que entra em contato e por em prática esse respeito através de uma afirmação ética do mundo e da vida. É bem verdade que, assim procedendo, sua existência se tornará mais difícil do que a daquele que vive só para si, mas, por outro lado, ela tornar-se-á mais rica, mais bela e mais feliz. Ao invés de ir vegetando simplesmente, ele viverá efetivamente a vida (SCHWEITZER, p. 238).
Em “Minha vida e minhas ideias” vemos, como o próprio título sugere, o pensador discorrer sobre aspectos biográficos e intelectuais da sua obra. Mas, que ninguém se engane, esse não é um livro de pormenores biográficos, no sentido de chegar à fofoca, mas uma autobiografia intelectual. É possível dizer que o livro estaria melhor representado na seguinte ordem: “Minhas ideias e minha vida”, porém, essa inversão é um preciosismo absolutamente dispensável. O que não é dispensável, isto sim, é conhecer a obra do músico, filósofo, teólogo e médico, que fez do extraordinário algo ordinário. Não seria esse ordinário um chamamento à humanidade para que faça da própria vida algo cheio de sentido? E que sentido seria esse? O de amar a vida como um todo.
Albert Schweitzer. Entre a água e a selva: narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África equatorial. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
______________. Filosofia da civilização: Queda e reconstrução da civilização. Cultura e ética. Trad. Petê Rissatti. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
______________. Minha vida e minhas ideias. Trad. de Otto Schneider. São Paulo: Companhia Melhoramentos, s/d.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.