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“A peste”, de Albert Camus


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 08/01/2021
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Em 2020, se havia um livro que eu tinha que ler era “A peste”. Mas, ao mesmo tempo, eu resisti até dezembro para iniciar a leitura, porque eu não aguentava mais ouvir e falar sobre a Covid-19. Cheguei a participar de uma palestra virtual sobre esse livro, e o palestrante, um médico, só explorou a ideia de uma França ocupada pelos nazistas. Tudo bem, mas ele não tocou na literalidade do texto, a peste bubônica. Tal abordagem me incomodou, porque antes das analogias gosto de saber o teor do livro. Enfim chegou a hora de enfrentar “A peste”, sendo que de Albert Camus (1913-1960) eu já tinha lido “O homem revoltado” e gostara.

Em linhas gerais, “A peste” se passa na cidade de Orã, Argélia, no ano de 194... Isso mesmo, “194...”. O narrador não precisa o ano. E para iniciar a obra ele relata como era a sua cidade:

Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Isto é: aqui, as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se sobretudo pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo a sua própria expressão, de fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam de mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro (CAMUS, 2020, p. 10).

A realidade de Orã é um cenário universal. Que lugar as pessoas não buscam “ganhar muito dinheiro”? Quanto aos prazeres de fim de semana, também hoje, 2020, são relegados aos fins de semana, como se a vida fosse uma máquina e o corpo, de tempos em tempos, precisasse descansar. Dirão os materialistas: “recarregar as energias”. É nesse tipo de vida que de repente a peste se inicia e rapidamente se propaga. É possível dizer desde já que a epidemia do livro diz respeito bastante aos cidadãos de Orã e, por analogia, a Covid-19 diz respeito bastante aos cidadãos de 2019, 2020... Ironicamente, assinalaremos que a pandemia do novo coronavírus iniciou-se em 201...

Na obra de Camus há destaque para alguns personagens, como o Dr. Bernard Rieux (médico), Rambert (jornalista), Tarrou (jornalista), Cottard (um capitalista), Grand (funcionário da Prefeitura) e Paneloux (padre). Passamos a ver o flagelo sob diferentes perspectivas, onde o narrador busca uma preciosa objetividade para contar os fatos. Apenas vez por outra ele, narrador, é tomado por algum lamento pessoal, e isso, a objetividade, é uma estratégia para que a história não se perca em lamúrias. Mas, que ninguém se iluda, não é porque há certa objetividade que a obra é seca. Orã é uma cidade que transmite aridez, mas não as palavras de Camus.

E a peste cresce linha atrás de linha e a cada página que se passa vemos pessoas a passarem da vida para a morte. A peste é devastadora e tem um alto poder de propagação. O Dr. Rieux dirá, tragicamente, que nesse tipo de situação ele não é mais alguém que cura, mas que diagnostica e isola, pois não há muito o que fazer, pois não havia medicamentos. Enquanto isso, milhares morrem aos olhos dos médicos e da população em geral.

É nesse momento da história que o narrador nos traz uma ideia assustadora: muitos estão a morrer, mas, se não os vermos padecer sob os nossos olhos, eles são como fumaça. E como não é possível vermos todos morrerem ao nosso lado, a dor alheia é somente alheia. É claro que esse pensamento é relativo, pois há pessoas que se importam com as dores do outro. Albert Schweitzer clamava em “Entre a água e a selva”: “Estava convencido, como ainda estou hoje, de que toda tarefa humanitária em terras coloniais compete não somente aos governos ou às organizações religiosas, mas essencialmente a todos os homens” (SCHWEITZER, 2010, p. 13). No entanto, não deixa de ser trágico pensar que milhares já morreram por outras pestes na história e milhares estão a morrer por Covid-19 e há quem pouco se importa com isso, dizendo apenas que a letalidade do novo coronavírus é baixa. Ora, quase 200 mil já morreram só no Brasil, seria preciso que essa multidão se reunisse, se abraçasse e se lançasse de um abismo na frente do que diz que “a letalidade é baixa”?

O interessante no livro de Camus, fora o tanto de momentos que podem facilmente ser relacionados à pandemia da Covid-19, é que o escritor não cessa de refletir sobre a vida. E nessas reflexões ele faz uma homenagem à figura do professor, que às vezes tem de morrer por ensinar que “dois e dois são quatro”. Quanto à figura do professor, que bem pode representar a ciência, há de se dizer que o negacionismo científico (em uma de suas vertentes, o ódio às vacinas), se tiver poder em mãos é capaz de matar o professor por ensinar que “dois e dois são quatro” ou que é importante todos se vacinarem. Vejamos as palavras de Camus:

Está certo. Mas não se cumprimenta um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Talvez o felicitemos por ter escolhido essa bela profissão. Digamos, pois, que era louvável que Tarrou e outros tivessem escolhido demonstrar que dois e dois eram quatro e não o contrário, mas digamos também que essa boa vontade lhes era comum à do professor, à de todos aqueles que têm o coração igual ao do professor, que, para honra do homem, são mais numerosos do que se pensa, ou pelo menos esta é a convicção do narrador. Aliás, este compreende muito bem a objeção que lhe poderia ser feita, ou seja, que esses homens arriscavam a vida. Mas chega sempre uma hora na história em que aquele que ousa dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte. O professor sabe muito bem disso. E a questão não é saber qual é a recompensa ou o castigo que espera esse raciocínio. A questão é saber se dois e dois são ou não quatro. Quanto aos nossos concidadãos que então arriscavam a vida, tinham de decidir se estavam ou não na peste e se era ou não necessário lutar contra ela (CAMUS, 2020, p. 126).

Que ninguém se iluda: a epidemia de Orã não aumentou os laços de solidariedade. A bem da verdade, tirando o toque de recolher às 23 horas e a sensação de exílio, pois ninguém entrava e nem saía da cidade, parecia que tudo estava igual. As pessoas saíam, frequentavam restaurantes, bares, cinemas, igrejas, etc. E no meio de tudo isso ainda havia aqueles que lucravam e mesmo amavam a epidemia. Há sempre vantagens possíveis de serem extraídas da desgraça. É o velho clichê absurdo: o que é mau para uns é bom para outros.

Por fim, não é preciso ir adiante para destacar a importância de ler “A peste”. É um livro que diz respeito a “194...”, a “201...” e que continuará ecoando na história da humanidade como uma crônica sempre atual. A cidade de Orã bem poderá ser substituída por Wuhan, por Nova Iorque, por Londres ou pelo mundo inteiro.

 

 

CAMUS, Albert. A Peste. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2020.

SCHWEITZER, Albert. Entre a água e a selva: narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África equatorial. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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