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Medida Provisória


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 04/08/2022
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A expectativa para essa semana era comentar sobre um filme de ação recheado de comédia e intitulado Trem-Bala, mas na reta final do verão americano, o que não vai faltar para as próximas semanas serão lançamentos como esse para serem comentados. Por isso, é possível abrir espaço aqui para um filme que vem sendo malhado antes mesmo de ser concebido. A obra em questão foi claramente censurada ao ter seu lançamento adiado por mais de um ano, isso sem nenhum tipo de justificativa, pela Ancine (órgão oficial do governo federal, né?) Além disso, seu conteúdo, aparentemente subversivo, tem deixado muita gente irritada, principalmente da extrema direita. Com uma trama distópica, mas muito alinhada com a realidade brasileira de agora, esse filme é um diferencial que acabou de ficar disponível no streaming. Essa semana, a Coluna Sétima Arte será dedicada ao longa Medida Provisória.

Esse filme é o primeiro dirigido por Lázaro Ramos, um profissional que fez história como ator no cinema brasileiro e que agora conquista seu espaço também na direção. Medida Provisória foi gravado antes da pandemia, em 2019, mas lançado apenas em abril de 2022. Seu lançamento nos cinemas ocorreu de maneira muito discreta, graças a censura branda (ou não) que filmes dessa categoria têm sofrido no Brasil do atual governo (caso você não se recorde, o longa Marighella, dirigido por Wagner Moura também penou nas mãos da Ancine). Com pouquíssimo tempo em cartaz nos cinemas, é agora, com sua chegada ao streaming da Globo, o Globo Play, que ele tem a chance de se popularizar realmente e de chegar a quem mais interessa, o público.

A trama é a adaptação para o cinema da peça teatral Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação, uma obra que também virou livro e acabou premiada em 2013 com um Jabuti. O tom do texto tem um ar de urgência, porque mete o dedo na ferida aberta do racismo no Brasil, isso num tempo em que, cada vez mais, o racismo estrutural se impõe e muitas pessoas ditas de bem deixam esse mal transparecer como se fosse algo natural, infelizmente. Os clichês e os estereótipos inteligentemente distribuídos e construídos ao longo do filme fazem com que ele tenha um ar de cotidiano. O homem branco tomando sorvete de chocolate pode ser entendido como uma metáfora ou a mulher de atitudes extremamente discriminatórias, mas que camufla seus atos com a justificativa de ser apenas trabalho, são coisas corriqueiras numa sociedade que não sabe reconhecer o valor e a contribuição dos afrodescendentes ao seu desenvolvimento.

Isso demonstra que esse é um filme que se constrói em detalhes, como o número da famigerada Medida Provisória, 1888, que faz referência ao ano da abolição da escravatura ou o nome da mulher que recebe a missão de colocar a medida em prática, Isabel. Uma vilã com o mesmo nome da princesa que, historicamente, aboliu a escravidão. Apegar-se a esses detalhes não apenas enriquece o filme, como também permite ao expectador uma reflexão e depois um desejo de discutir os acontecimentos do filme, pois sua proximidade com a realidade instiga muitos questionamentos. As falas do personagem André: “Como foi que a gente deixou isso acontecer? Como foi que a gente riu disso?” se encaixam perfeitamente para muitos absurdos que somos obrigados a engolir calados diariamente e que nos deixam estarrecidos.

Outro detalhe interessante são os chamados “afrobunkers”, espaços de resistência que fazem o público recordar dos Quilombos, que por sua vez, eram comunidades de resistência criadas por afrodescendentes no período da escravidão como espaços de manutenção cultural, social, de línguas e costumes. Os afrobunkers são uma bela e triste metáfora para o constante estado de defesa ao qual os afrodescendentes são obrigados a se manterem constantemente num Brasil que os mata seja por violência armada, desigualdade ou pobreza. Dados de 2021 indicam que 78% das pessoas mortas no Brasil por armas de fogo eram negros.

Com um baixíssimo orçamento, Lázaro Ramos fez milagre ao gravar exclusivamente na cidade do Rio de Janeiro e ambientar a cidade num futuro que ao mesmo tempo que é tecnológico ainda é desigual. É claro que isso não possibilitou ao filme explorar os efeitos da famigerada Medida Provisória em outros espaços e regiões do país, mas, ainda assim, sua criatividade atende muito bem a demanda. Ao limitar a trama a um núcleo pequeno de personagens o roteiro permite uma identificação muito mais imediata com a causa e o efeito dos acontecimentos. O roteiro, construído por Lázaro Ramos e Lusa Silvestre, não é o primor ao qual estamos acostumados, ele peca em ritmo, não causa a aflição esperada nas cenas de perseguição e não imprime urgência nas cenas de confinamento. Mas os diálogos afiados e o profissionalismo dos atores envolvidos supera essas dificuldades e elevam o nível artístico da obra.

O elenco vem recheado de grandes estrelas da dramaturgia nacional e ainda incorpora um astro internacional conhecido por uma geração inteira. Vamos falar primeiro das vilãs, duas grandes atrizes que interpretaram vilãs icônicas nas telenovelas dão vida a duas mulheres terríveis nessa história, são elas Adriana Esteves e Renata Sorrah. Elas personificam muito bem o sentimento reprimido de uma sociedade que, mesmo 134 anos após o fim da escravidão, ainda vê as essoas negras com indiferença e nutre o desejo pelo branqueamento do Brasil. Projeto levado a cabo pelo governo brasileiro ao longo de muitos anos entre os séculos XIX e início do século XX, por meio das constantes ondas migratórias europeias. Já os protagonistas ficaram a cargo de Taís Araújo, Seu Jorge (que também foi protagonista em Marighella) e o ator Alfred Enoch, conhecido mundialmente por ter interpretado o personagem Dino Thomas na milionária franquia Harry Potter. Além deles, ainda estão no elenco Emicida, Diva Guimarães, Aldri Anunciação e muitos outros.

Vamos à trama! Num futuro não muito distante, o governo brasileiro decreta uma Medida Provisória que obriga os cidadãos negros (naquele momento chamados de pessoas de melanina acentuada) a retornarem para a África, segundo o governo, o lugar a que pertencem devido suas origens. Não demora para que a medida deixe de ser aplicada apenas às pessoas de melanina acentuada voluntárias e passe a ser obrigatória, o que desencadeia uma onda de terror por todo o país. Diante do risco de serem presos e deportados, dois primos refugiam-se em um apartamento, onde debatem questões sociais e raciais, enquanto esperam a esposa de um deles que está perdida na rua, num Rio de Janeiro caótico e perigoso para uma mulher negra e grávida. Nesse meio tempo eles compartilham anseios, sonhos e lutam como podem por um país diferente.

Por que ver esse filme? Por que ele é um misto de diversão, drama e ação, mas mais que isso, é um grito contra a injustiça, contra o racismo e o atraso imposto pelo pensamento de uns e outros. O irônico personagem de Seu Jorge é o alívio cômico da trama e, mesmo assim, também é quem impõe seu tom dramático. Sem levantar bandeira contra ou a favor desse ou daquele governo, o filme faz refletir sobre os erros que foram e ainda são cometidos contra grande parcela da população que foi imensamente responsável pelo enriquecimento do pais, linguisticamente, gastronomicamente, culturalmente e economicamente. A única coisa que distoa no filme é seu final, que tem um tom apoteótico meio novelesco, mas que ainda assim não macula a beleza da obra. Boa sessão!

 Assista ao trailer:

 

 

 

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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