Ainda Estou Aqui - Coluna Sétima Arte
Eventualmente, em meu círculo mais próximo de amizades, converso sobre cinema, dentre outras formas de cultura e entretenimento, interessante que nesses momentos uma piada se tornou recorrente e ela consiste em afirmar que o filme brasileiro de maior sucesso da atualidade foi visto pelo mundo inteiro, menos pelo Brasil. A sentença jocosa e hipérbole possui claramente um tom irônico, bem por isso, sempre arranca risos de quem está mais engajado no meio da Sétima Arte. Não sei se esse fato pitoresco tem o mesmo ar cômico para você caro leitor, porém, tenho certeza que ele deve expressar muito bem o seu sentimento em relação ao novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui. Jornais em vários formatos e as mídias digitais têm falado sobre esse filme constantemente, de forma que é quase impossível que ninguém tenha visto alguma entrevista de Fernanda Torres comentando sobre esse filme, porém, o filme que é bom ninguém viu! Por que isso? A resposta é simples, uma boa estratégia de marketing.
Não é de hoje que conhecemos o sentimento avesso do brasileiro ao cinema nacional e, convenhamos, o cinema nacional é incrível, porém, não atende a demanda comercial que o grande público tanto gosta. Portanto, não é raro ver excelentes filmes feitos no Brasil amargarem bilheterias ínfimas. Walter Salles, ciente da potencialidade do filme, apresentou-o em Festivais importantes ao redor do mundo e conquistou público e crítica por onde passou, daí veio a sensação de sermos os últimos a contemplarmos a obra. Entretanto, esse fato gerou um grande frisson e o que se espera a partir desse final de semana são salas de exibições lotadas para ver essa obra.
Os dez minutos de aplausos ininterruptos à obra no Festival de Veneza, os vários prêmios em inúmeros Festivais ao redor do mundo, somados às críticas positivas e elogios rasgados de sites internacionais especializados, como o Deadline o Hollywood Reporter, colaboraram para criar esse clima. Além desses, outros sites começaram a comentar sobre a possível indicação de Fernanda Torres para uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz na próxima edição da premiação, o que fez aumentar ainda mais o interesse sobre o filme. Receita perfeita para uma grande estreia nos cinemas brasileiros essa semana.
Dito isso, fica claro que, além dos críticos, ninguém, inclusive eu, viu o filme em nosso país. Dado esse fato, o texto a seguir é um apanhado geral composto a partir das opiniões de quem já contemplou a obra, algo que nos permite ter uma ideia do que esperar desse filme ao ir vê-lo no cinema. Em Ainda Estou Aqui, o diretor Walter Salles convida o público a um mergulho intenso e por vezes doloroso na história recente do Brasil. Com sua habilidade em explorar nuances emocionais e sociais, Salles constrói uma obra que desafia o espectador a revisitar a realidade do período da ditadura militar, transcendendo a narrativa de eventos históricos para apresentar uma reflexão íntima e poética sobre o peso da memória e da identidade.
Com já explicitado anteriormente, o filme é estrelado por Fernanda Torres, com uma participação especial de Fernanda Montenegro. Ainda Estou Aqui leva o público a uma viagem por uma era marcada pela repressão, violência e pelo inominável desafio de seguir em frente sem perder a essência.
O diretor, conhecido por sucessos como Central do Brasil, de 1998, e Diários de Motocicleta, de 2004, volta a defender o cinema como uma ferramenta de resistência ao esquecimento. Vale a pena ressaltar que dos diretores nacionais da atualidade, o mais internacional deles é Walter Salles, sua forma de fazer cinema transcende as barreiras geográficas e culturais do Brasil e permite ao público de qualquer lugar compreender e se conectar com histórias que são muito nossas. Em um mundo onde as questões políticas e ideológicas continuam a polarizar a sociedade, Ainda Estou Aqui emerge como um lembrete sobre os perigos da repressão e do autoritarismo. Porém, conforme a grande maioria dos críticos, a verdadeira potência do filme não está apenas em sua condenação ao contexto histórico da ditadura, mas sim, em sua capacidade de evocar a jornada emocional de uma família que sofreu nas mãos do Estado.
Assim como em clássicos de Ingmar Bergman ou Tarkovsky, o filme se utiliza da narrativa fragmentada para espelhar o estado emocional dos personagens. Aqui, memória e tempo são manipulados como se fossem um só tecido, fluindo e se entrelaçando conforme a protagonista tenta reconstruir o sentido de sua vida. Este “eu” fragmentado, conceito filosófico abordado, por exemplo, por Sartre, questiona a ideia de identidade como algo fixo. Em vez disso, a trajetória de busca por significado revela uma pessoa em constante reconstrução, com sua própria história se tornando algo fluido, vulnerável a cada lembrança dolorosa ou a cada sombra do passado.
A obra traz em si uma sobriedade emocional que, por vezes, pode ser interpretada como uma distância ou frieza. Ao abordar uma narrativa tão intensa, o filme evita o caminho fácil dos clichês pautados em exageros dramáticos e opta por uma estética contida, onde cada emoção é sutil e calculada. O resultado é um filme que se destaca pela sua meticulosidade técnica, mas que, para alguns espectadores, pode parecer pouco emotivo. Em muitos momentos, a densidade do roteiro e a carga histórica da trama fazem com que a experiência emocional do público seja mais de contemplação do que necessariamente de empatia.
Muitos comentam que a falta de uma abordagem mais calorosa na direção pode ser um ponto de crítica. Ao retratar uma família em crise após uma acontecimento traumático, seria interessante que o filme explorasse mais os pequenos gestos e olhares que dizem tanto sobre as relações interpessoais. Ao focar em uma visão esteticamente controlada, o filme acaba por limitar o alcance emocional que poderia obter. Os momentos de ternura, especialmente ao redor das personagens femininas, são sutilmente tratados, mas poderiam ter sido mais expressivos, permitindo ao público uma conexão mais direta e sincera com a dor e resiliência dessa família.
Importante lembrar que ao ir ao cinema, o público não verá personagens, verá pessoas, pois o filme é baseado nos fatos contidos na obra literária escrita pelo próprio filho dos protagonistas. Por isso mesmo, Ainda Estou Aqui é um filme que desafia o público a pensar, refletir e, acima de tudo, lembrar. Ele se apresenta como um manifesto contra o esquecimento, um testemunho cinematográfico de um período sombrio que ainda ecoa na memória coletiva brasileira e que, de tempos em tempos, (talvez até de quatro em quatro anos), volta como um fantasma medonho para assombrar a vida daqueles que não se encontram absortos em sua própria bolha. Embora a experiência emocional do filme possa não ser a mesma para todos, é inegável que Salles oferece uma obra de grande relevância histórica e social, um filme que visa tanto educar quanto provocar uma análise introspectiva. Salles mais uma vez prova que o cinema, mais do que entretenimento, é um espaço de resistência e diálogo, mas será que isso será o suficiente para a tão sonhada indicação ao Oscar? Veremos! Boa sessão!