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Justino: o primeiro filósofo cristão


Por: Fernando Razente
Data: 11/09/2023
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“A vida moral e intelectual de Justino tem sua fonte numa e noutra e pode-se dizer que ele soube conciliá-las, pois viveu de uma e de outra, já que não pudera viver sacrificando inteiramente uma ou outra.”

A. Puech, Les Apologistes grecs du lle siècle de notre ère, Paris, 1922, 52-53.

Chamado de filósofo em sua própria época, Justino Mártir (100 – 165 d.C.) é considerado um pioneiro na busca pela explicação do cristianismo em moldes filosófico-racionalistas, bem como na recepção de parte da cultura pagã em benefício da comunidade eclesiástica. Em seus escritos, Justino manifestou uma nova atitude para com a cultura ao seu redor: valorização e adaptação. Trata-se de um exemplo para nós, cristãos contemporâneos, de como nos engajarmos corajosamente com a cultura e o ensino de nosso tempo, lendo autores não-cristãos, conhecendo e debatendo com rigor suas ideias e, naquilo que for possível, integrando-as à visão cristã.

A história de Justino começa em Flávia Neápolis (perto de Siquém, na Palestina), no primeiro século. De origem pagã, Justino cresceu longe da doutrina cristã e desde cedo demonstrava ser intelectualmente ativo e economicamente independente, escolhendo posteriormente levar uma vida de filósofo, pesquisando as novidades da sabedoria de sua época. Sua educação intelectual foi aprimorada para a época frequentando a escola dos estóicos, dos peripatéticos, dos pitagóricos e também dos platônicos (cf. Diál. 2,1-6). Dono de uma curiosidade incontrolável, foi assim que Justino posteriormente acabou conhecendo a fé cristã.

Já desencantado com as filosofias que não lhe proporcionaram o saber tão procurado e impactado com o corajoso enfrentamento da morte por parte dos cristãos, Justino decidiu conhecer a mensagem cristã e se surpreendeu com a beleza, verdade e profundidade da nova doutrina que surgia naquele mundo antigo pela boca de Jesus Cristo e de seus discípulos. Desta forma, o jovem Justino (já por volta de 132) declarou – após sua conversão – que o cristianismo foi “(...) a única filosofia confiável e útil” que ele havia encontrado.

Nos causa certa estranheza o fato de Justino ter denominado o cristianismo não como uma religião, mas como uma ‘filosofia’, e isso provavelmente pelo fato de, diferente de Justino, não compreendermos a dimensão lógica, educativa e racional da fé. Contudo, como um bom filósofo, Justino percebeu rapidamente que a mensagem da fé cristã não se tratava de uma mera especulação mística ou de uma crença subjetiva anti-intelectual; era a explicação mais racional da constituição da realidade.

Com o passar do tempo, Justino acabou se mudando para Roma, tornando-se num cristão erudito, colocando-se frente a frente com filósofos de sua época e utilizando categorias, conceitos e métodos de seus adversários intelectuais na arena pública do conhecimento para defender que somente o cristianismo dava conta de explicar as principais questões que perturbavam os filósofos. Por isso, Justino foi aos poucos sendo considerado o primeiro apologista cristão pós-apostólico da história. Era um indivíduo com uma forte e real relação com sua comunidade local de irmãos na fé, mas que trabalhava na arena pública da sociedade imperial de Roma a fim de comunicar a razão da esperança da cristandade.

O professor de História Antiga da Igreja Fernando Rivas Rebaque, considera Justino um verdadeiro “intelectual cristão” em meio ao grande e mais importante centro político da época. Embora membro de uma igreja, Justino não se comunicava primordialmente com a igreja, mas com a sociedade pagã. Nas palavras de um de seus biógrafos Hans Campenhausen em sua obra Os Pais da Igreja – a vida e a doutrina dos primeiros teólogos cristãos (2007), Justino inovadoramente “(...) apareceu em público em seu próprio nome e não trabalhou mais, como os professores cristãos primitivos, dentro da comunidade religiosa, mas dentro da nova estrutura sociológica de uma 'escola' filosófica privada. Ele e seus alunos foram atraídos para a luta competitiva habitual das escolas e facções filosóficas.”

Diferente do esperado com sua grandiosa habilidade intelectual, Justino não se tornou pastor, presbítero ou diácono; seu chamado – como ficou claro – não era de um catequético, e seus alunos não eram exatamente os catecúmenos. Ele era um filósofo cristão, engajado com a crítica social e na leitura cultural de seu tempo a partir de uma visão genuinamente cristã, como se vê em sua obra Apologia, dedicada ao então imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César. O exemplo máximo dessa vocação de filósofo foi o fato dele ter, em Roma, aberto uma escola própria de filosofia, onde ensinava e escrevia.

Trabalhando como um professor de filosofia, Justino se empenhou em mostrar aos alunos e para a sociedade a coerência intelectual do cristianismo em meio as filosofias gregas e romanas de sua época. Para tanto, Justino também se capacitou, tornando-se um grande leitor e intérprete ativo de Platão, um dos filósofos mais lidos e comentados de sua época. Em sua análise ponderada e equilibrada dos textos de Platão, Justino o reconheceu como um filósofo “(...) inteiramente de acordo com a verdade do Cristianismo”.

Essa característica ímpar de Justino em se comunicar com facilidade com a cultura e a filosofia e dela extrair o que fosse de útil para a fé nos impressiona; mas como explicar tal versatilidade, tolerância e valorização da cultura pagã? Há quem argumente pela sua própria origem grega, mas creio que tal característica deve-se acima de tudo pela pressuposição de Justino da onipresença soberana de Cristo sobre todo o mundo criado.

Ao meu ver, Justino não desprezava a cultura pois sabia que, independente do lugar, língua ou etnia, todos os seres humanos compartilham de uma mesma razão (logos), que, por sua vez – como ele descobriu no cristianismo – é um atributo da Imago Dei que manifestava a presença – ainda parcial e distorcida – do Verbo (Logos). Tal atributo humano permitia nas sociedades pagãs tanto a compreensão e transmissão de verdades básicas fixadas pelo Verbo Eterno (como princípios lógicos e morais), bem como a recepção racional da fé cristã.

Cônscio disso, Justino sentia-se à vontade tanto para ouvir a cultura de seu tempo e dela aproveitar as verdades provenientes do Logos divino, como comunicar, por meio de proposições racionais, a própria fé cristã a fim de convencer da veracidade das palavras de Jesus. Nessa recepção e diálogo com a cultura estava toda sua atividade como um intelectual cristão. Como ele mesmo escreveu: “Em todos que corretamente discursaram percebemos que os pontos que se harmonizam com o cristianismo se devem à participação de suas mentes com a razão seminal de Deus (Verbo) [...] Tudo quanto, por algum homem, em algum lugar, foi opinado acertadamente, pertence a nós, cristãos, porquanto nós, em presença de Deus, adoramos e amamos a razão (o Verbo) que procede do Deus encarnado e inefável.”

Em resumo, Justino elaborou uma interpretação da cultura ao seu redor que valorizou os estudos filosóficos e determinou o lugar dessa cultura na história para os cristãos. Como sementes de Cristo, as verdades filosóficas da cultura precisavam ser utilizadas pelos cristãos sem nenhum receio em sua educação e aprimoramento intelectual para a glória de Deus. Essa capacidade tão singular de Justino que lhe tornou um pioneiro na elaboração de uma educação cristã que valorizasse aquilo que era de proveitoso na cultura ainda nos deve inspirar na missão cristã de sério engajamento cultural.

Nós, cristãos da era pós-moderna, não precisamos alimentar uma demonização tertuliana da filosofia e da cultura, mas precisamos ter uma visão mais otimista e aberta ao diálogo com os intelectuais de nosso tempo, e assim como Justino, reconhecer as “verdades seminais” na filosofia pagã contemporânea, como fruto da graça comum do Verbo e, delas extrair o que for útil para edificação da nossa fé e do intelecto da nossa comunidade cristã.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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