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Virgílio. “Eneida”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 03/07/2025
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         Para que as resenhas sobre “Ilíada” e “Odisseia” fiquem completas, o que, por si só, constitui uma odisseia, é preciso ir além, chegando até à “Eneida”, obra colossal de Virgílio. E por que isso? Pelo simples e extraordinário fato de que se alguém quiser saber sobre o cavalo de madeira dado pelos aqueus (gregos) aos teucros (troianos), pouco ou nada encontrará nas obras de Homero, mas na de Virgílio, pela boca de Eneias, herói troiano, que conseguiu sair da batalha pelas mãos de sua mãe, a deusa Afrodite (ou a romana Vênus). Logo se percebe que o filme “Odisseia”, de Francis Coppola, e “Troia”, de Wolfgang Petersen, beberam nas águas de Virgílio.

          Eneias, após fugir da guerra de Troia, inicia uma odisseia até chegar ao seu destino, a saber, Roma, e nesse entrementes desembarca no território da rainha Dido, em Cartago, e ela lhe pedirá para narrar as suas histórias, ao que o pio herói (a piedade é a principal virtude do troiano) as narrará em minúcias. Então o herói conta os anos que esteve em alto mar, sofrendo todo tipo de sorte, e junto a essas desventuras narra outras, como as que dizem respeito aos gregos, a exemplo dos desfechos que tiveram os guerreiros Ulisses, Ájax, Agamêmnon, Pirro e Menelau.

          Para todo efeito, “Eneida” se divide em duas partes, ao longo de seus doze livros. A primeira diz respeito à odisseia de Eneias, seus sete anos de viagens até chegar ao seu destino, que seria a Itália; logo se vê a semelhança dessa parte com a “Odisseia”, de Homero. E a segunda, já em terra, é a representante latina para a “Ilíada”, visto que se iniciam as batalhas de Eneias para tomar posse da Itália, também chamada de Hespéria, e, para tanto, terá de enfrentar diversos povos, como os latinos e os rútulos, chefiados pelo poderoso Turno.

          Mais do que fazer um resumo sobre as obras, o que tem me preocupado ao longo das resenhas é colocar minhas sensações ao longo das leituras. Assim, preciso dizer que a cada dia que sentei para ler “Eneida”, lida em dez dias, era como se eu próprio entrasse em uma batalha. Abrir um livro da “Eneida” era, a um só tempo, desafio, medo, coragem e vitória. Desafio, pois intimida o tamanho da empreitada e é preciso enfrentá-la. Medo, pois a pequenez do meu conhecimento é absurda perto do que se encontrará. Coragem, afinal, é impossível sair para a labuta sem me movimentar. E vitória, já que terminar esse monumento da cultura traz muitas vantagens. Por que vantagens? Porque Virgílio, que foi o companheiro de viagem de Dante pelo Inferno, se torna também o nosso companheiro e nos ensina a compreender, a ver, a sentir o ser humano de modo profundo, não ao acaso Eneias não se limita às esferas do humano para compreender o humano: ele é pio, isto é, observador dos preceitos religiosos.

          E pensar que li “Eneida” para ministrar uma única aula... E pensar que li “Eneida” para compreender melhor a cultura greco-latina... E pensar que li “Eneida” para compreender melhor “A Divina Comédia”... E pensar que nas duas vezes em que estive em Roma pude contemplar um pouco da obra de Eneias e, porque não, da obra de Virgílio... Uma só obra, várias ângulos; uma só obra, várias obras.

Não são poucas as vezes que me ironizam por eu ser “de humanas”. Primeiro que acho uma vulgaridade essa divisão das ciências, e segundo que os que ela promovem, na maioria das vezes, enxergam as humanidades como algo inferior, como algo de menor dificuldade diante das exatas ou das biológicas. A quem pensa assim, que leia apenas um trecho da “Eneida”:

 

Ademais desses, na entrada outros monstros de feras demoram:

biformes Cilas, Briareu de cem braços no seu rodopio,

os indomáveis Centauros, velozes no ataque e na fuga,

a Hidra de Lerna, plangente, com seus sibilantes gemidos,

mais a Quimera a lançar sempre flamas da goela abrasada,

terribilíssimas Górgonas junto às funestas Harpias

e a alma do imenso Gerião de três corpos em luta constante. (VIRGÍLIO, 2021, p. 395).

 

          A exemplo das histórias de Homero, “Eneida” também toca em temas fundamentais de uma ponta à outra, e seu estopim se dá de forma semelhante à Guerra de Troia: o rei Latino queria dar a sua filha, Lavínia, em casamento a Eneias, o estrangeiro que os deuses tinham dito que lhe apareceria, mas, por fim que o rei, sob influência da esposa, Amata, a deixou para Turno, líder dos rútulos. Tamanho ultraje não foi tolerado por Eneias, que se engajará para resgatar o que lhe fora prometido, o que lhe fará se aliar a outros povos, como os árcares, liderados por Evandro e por seu filho Palante.

          A exemplo das histórias de Homero, em “Eneida” se encontra um catálogo dos deuses romanos, em especial Apolo, Aurora, Baco, Cibele, Diana, Éolo, Hércules, Júpiter (Jove), Juno, Marte, Mercúrio, Minerva, Netuno, Vênus e Vulcano, mas sem se descuidar das musas, das fúrias e de tudo o que pudesse ter ligação com o espiritual, como os rios infernais, os montes e as cidades sagradas. E pensar que “Eneida” foi uma encomenda do imperador Otaviano a Virgílio... E pensar que a “Eneida” trata de um confronto de mais de um milênio anterior à sua escrita, mas que diz mais da época de Otávio do que da de qualquer outro... E pensar que a história diz muito do presente... É por isso que o historiador não é alguém que vive (só) do passado, mas alguém que se importa (profundamente) das construções mais recentes. Eis as palavras de Marc Bloch, em “Apologia da história”:

 

Já contei em outro lugar o episódio: eu estava acompanhando, em Estocolmo, Henri Pirenne. Mal chegamos, ele me diz: “O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova em folha. Comecemos por ela.” Depois, como se quisesse prevenir um espanto, acrescentou: “Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida.” Essa faculdade de apreensão do que é vivo, eis justamente, com efeito, a qualidade mestra do historiador. (BLOCH, 2001, p. 65-66).

 

          O resultado do empreendimento de Eneias pela Itália? A fundação de Roma pelos seus descendentes, que, alimentados por uma loba, cerca de trezentos anos após a sua morte, darão início a uma civilização de proporções colossais, como é o caso da obra do poeta latino. Como compreender a cultura ocidental sem a leitura da “Eneida”? Como compreender as línguas neolatinas sem a leitura da “Eneida”? Como diz um ditado, todos os caminhos levam à Roma.

          Por fim, como costumo fazer em todas as resenhas, deixo trechos do próprio escritor para que o leitor possa saborear a sua escrita. O trecho abaixo é a parte final da obra de Virgílio. A quem ainda tem uma relação primitiva com a leitura, pode pensar: “Mas contar justo o final?” Porém, a quem já deu um passo a mais na relação com a cultura, pouco se importa com isso, pois sente a cultura em outros termos.

 

Júpiter a Juno:

Juno, que fim terá isto? Quando há de acabar esta guerra?

Como tu própria admitiste e o confessas, Eneias um dia

terá de vir assentar-se nos céus por desígnios dos Fados.

Que te detém? Que esperança te anima em tão gélida nuvem?

Ficou bonito ferir um mortal a um dos deuses do Olimpo?

Ou que Juturna – sozinho jamais tanta força teria –

desse ao irmão sua espada e mais ânimo aos rútulos fracos?

Desiste disso e te deixes vencer dos meus rogos instantes.

Não te amofines com tantos desgostos nem deixes que a tua

boca de rosa me venha afligir com frequentes queixumes.

A hora suprema chegou. Foi-te fácil por terra e não ondas

cansar os teucros, mover esta guerra, levar a desgraça

à casa real e no luto afogar a alegria das bodas.

Basta! Não sigas adiante! (VIRGÍLIO, 2021, p. 857).

 

A resposta de Juno:

Porque sabia, Senhor poderoso, o que tinhas em mente,

contra meu próprio querer afastei-me de Turno e da Terra.

De outra maneira, jamais me verias sozinha entre as nuvens

tantas afrontas sofrer; mas, cercada de flamas, à frente

de batalhões aguerridos, daria trabalho aos troianos.

Confesso, sim; permiti a Juturna que ao irmão socorresse,

desamparado, e que tudo fizesse com o fim de salvá-lo,

mas sem valer-se de flechas e do arco nas lides sangrentas.

Pela implacável nascente das águas estígias eu juro ,

culto exclusivo com que se comprazem os deuses eternos:

cedo, afinal, e abandono as batalhas de tantos horrores.

Só uma coisa te peço, que escapa aos decretos do Fado,

para prestígio dos teus e vantagem dos próprios latinos:

quando os dois povos – que seja! – se unirem em doces alianças,

unificados passando a viver com os mesmos costumes,

e leis iguais, não permitas que a gente latina se torne

na sua terra troianos, nem teucros se chamem, nem percam

nunca sua fala sonora, os costumes, as vestes altivas.

Eternamente subsistam latinos e reis de Alba Longa.

Cresça a potência romana com base nos ítalos fortes.

Troia acabou; deixa então que com ela seu nome pereça. (VIRGÍLIO, 2021, p. 857-859).

 

A palavra final de Júpiter:

Irmã de Jove, nascida do velho Saturno, alimentas

tanto rancor no imo peito, estes estos de indômita fúria?

Pois vá que seja! Domina os arroubos de inúteis vinganças,

que eu me submeto de grado aos caprichos de quanto pedires.

Conservarão os ausônios a língua e os costumes paternos,

o nome antigo também ficará; os troianos no sangue

mergulharão dos latinos. Costumes e ritos sagrados

todos terão em comum; um só povo, de nome ‘latino’.

Dessa mistura de sangue da Ausônia verás uma estirpe

de homens piedosos sair, mais devotos que os homens e os deuses.

Povo nenhum acharás que mais honras no culto te prestem. (VIRGÍLIO, 2021, p. 859).

 

Marc Bloch. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Virgílio. Eneida. Trad. de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2021.

 

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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