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“Ter ou Ser?”, de Erich Fromm


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 19/08/2025
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No dia 09 de novembro de 2021, duas onças, mãe e filho, atacaram flamingos no Parque das Aves, em Foz do Iguaçu, Paraná, deixando mais de 170 mortos. Foi uma tristeza? Sem dúvida. No entanto, a mãe estava ensinando o filhote a caçar, o que se configura como algo natural o triste episódio. Talvez se no Parque houvesse mais segurança o acontecimento teria sido evitado. Porém, os comentários mais tacanhos sobre o assunto eram da ordem: “Devemos matar as onças, pois elas devoram nossos animais, a exemplo dos nossos gados.” Infelizmente, conheço quem contrata caçadores de onças para que estas não devorem seus bois, já que estes lhe renderão um alto dinheiro. As onças, que quase entraram em extinção, um dia ficarão registradas apenas nos livros do mestre Araquém Alcantara e em um ou outro zoológico, para servirem de entretenimento. A partir dessa história, é possível visualizar faces dos modos ser e ter que serão analisadas por Erich Fromm.

Em “Ter ou Ser?”, o pensador alemão, de modo didático, explica as principais características dos modos ter e ser, tendo ciência que essa classificação não é simples de ser vista no dia a dia, mas que, assim procedendo, ajudará a humanidade a melhor se ler. O modo ser tem a ver com amar, partilhar, conhecer, isto é, atitudes espirituais que veem no ser humano não um objeto de posse, mas de vida. O modo ter, por sua vez, se relaciona com a posse, seja ela de si (em um sentido negativo), dos outros e das coisas; há quem enxergue o matrimônio como uma empresa, sendo que a companheira só será assim considerada se gerar lucro.

Erich Fromm, para tecer a sua análise da sociedade industrial, pois é este o foco das suas preocupações, se embasa em vários mestres, como Buda, Jesus Cristo, Marx e Albert Schweitzer. A quem objetar: “Como é possível pensadores tão diferentes conviverem em Erich Fromm?”, é preciso dizer, desde já, que o pensador sabe das diferenças entre os referidos mestres, mas, os observa para além de caixas conceituais, buscando captar o que eles têm de melhor para uma mudança positiva na humanidade. Nesse sentido, é possível ver o próprio Erich Fromm enquanto um humanista, enquanto alguém até místico, que se desprende do aqui e agora, deixando-nos ideias atemporais, além da visão limitada do modo ter.

Para esclarecer suas ideias, bem como propor uma Nova Sociedade e um Novo Homem, Fromm tratará, por exemplo, dos modos ser e ter na esfera educacional.

O aprender no modo ter se relaciona com o decorar, com o volume de publicação e com o tamanho do currículo; tem a ver com status, com o fato de a pessoa ter conseguido uma carreira de destaque ou não. É comum ver pesquisadores que publicam (sem terem de fato participado da execução) trinta, quarenta, cinquenta artigos em um ano, sendo que só conseguiram isso por causa de seu poder acadêmico. É o famoso “pedágio”: alguém usa o laboratório de certa pessoa e, por causa disso, deve dar parte dos créditos a ela. Tudo isso tem a ver com o modo ter. Disso vêm bolsas de pesquisa, convites para palestras, bancas, etc. Há quem se apegue a cargos, há quem trata certo tema e certo autor como de sua posse, há quem brigue por brigar...

Já o aprender no modo ser se relaciona com criação, com criatividade. Ao contrário do modo ter, nesta outra esfera existencial, o saber não é uma posse; é por isso que esse tipo de disposição não se importa em “perder” um debate, pois nem enxerga o conhecimento a partir de perdas e ganhos, e nem vive a partir de disputas. O saber não é aprisionado no modo ser, o que permite para esse tipo de pessoa criar, mudar, gerar incômodos (para si e para os outros) e, com isso, avançar o saber. Não há ciência parada no tempo.

Erich Fromm estende suas ideias, que têm profundo valor para o ser humano, para temas que vão além da educação, até porque os modos ser e ter são globais. Fromm analisa esses modos a partir do casamento, das religiões, da economia e das nações. Para tanto, não são poucas as críticas que desfere à sociedade patriarcal; o pensador também critica os hipócritas, que por fora, ideologicamente, professam a religião do amor (cristianismo), mas secretamente cultivam a religião do ódio; economicamente, é preciso que a sociedade pare de destruir a natureza e para de ver os animais enquanto posses, pois isso acarretará o fim do próprio ser humano; e o abismo entre grandes potências e nações pobres deve diminuir, sob o risco de um colapso humanitário (vide os grandes movimentos imigratórios, como o venezuelano). Essas constatações podem ser vistas aos montes, desde expressões como “chefe de família”, até pessoas que se consideram superioras às demais por terem raízes europeias.  Todos esses exemplos são armadilhas do modo ter que acabam por aprisionar o ser humano, inclusive (ou a começar) inconscientemente.

O ter leva à despersonalização, o que é visto facilmente no caso da burocracia, que é o governo de ninguém. Um burocrata, ao mesmo tempo em que é senhor de tudo (o que lhe está às mãos), é senhor de nada, pois a tudo tende transformar em números, logo, em coisas. Nessa esfera, é importante citar Adolf Eichmann, que, tanto para Hannah Arendt quanto para Erich Fromm, é o modelo de burocrata. Todo burocrata é um Eichmann? Não. Porém, como o pensador nos alerta, há muitos sinais de Eichmann no dia a dia.

 

Não estou dizendo que todos os burocratas são Eichmanns. Em primeiro lugar, muitos seres humanos em posições burocráticas não são burocratas pelo caráter. Em segundo lugar, em muitos casos as funções burocráticas não alteram a personalidade nem matam seu aspecto humano. Contudo, há muitos Eichmanns entre os burocratas, e a única diferença é que não tiveram que destruir milhares de pessoas. Mas quando um burocrata num hospital recusa-se a admitir um doente em estado crítico porque as regras mandam que seja encaminhado a um médico, aquele burocrata age de modo semelhante ao proceder de Eichmann. E o mesmo acontece com o assistente social que deixa morrer à míngua um desempregado para não violar certa norma do código burocrático. Esta atitude burocrática existe não apenas entre administradores; verifica-se entre médicos, enfermeiros, professores, catedráticos – assim como entre muitos maridos em relação às suas mulheres e em muitos pais em relação a seus filhos. (FROMM, 1979, p. 181).

 

É contra a despersonalização típica do modo ter que Fromm luta. A sua fé, ativa, o impõe a se irar contra as armadilhas do ter. Sua ira se assemelha a de Jesus ao entrar no Templo e se irar com os comerciantes. A ânsia pelo ter tende a tudo transformar em lucro, até em lugares que deveriam imperar o modo ser. Não custa dizer que, para Fromm, o judaísmo e o cristianismo são, em essência, religiões próprias do modo ser, mas que, e aqui reside a criticada hipocrisia, podem ter inúmeros fieis sedentos pelo poder. É de desanimar? É de afirmar que aquilo que Erich Fromm propõe é impossível de se concretizar? É de desanimar, sim, mas, depois, é preciso animar, pois, do contrário, a vida tornar-se-á impossível de continuar, e este será o trágico legado que deixaremos aos nossos descendentes: “De fato, nada é mais eloquente sobre nosso egoísmo do que quando vamos prosseguindo em nossa prática de pilhas as matérias-primas da terra, envenenando-a, e preparando a guerra nuclear. Não hesitamos nem mesmo em deixar esta terra saqueada como legado aos nossos descendentes.” (FROMM, 1979, p. 184).

Ailton Krenak propôs ideias para adiar o fim do mundo, e Erich Fromm, antes do líder indígena, também propôs. Ao ver o caso das onças atacando os flamingos, é preciso ter ciência de que o modo ter é incompatível com uma vida saudável, já que ele leva à extinção das onças em prol dos bois, estes, por sua vez, levam à extinção das matas em prol das máquinas e estas, por fim, ocasionam o fim dos seres humanos. Trágico? Sem dúvida, e, por causa disso, é preciso pensar e repensar os modos ser e ter. A título de encerramento, trago um poema que escrevi a partir de “Ter ou Ser?”

 

Eu olhei para o rio e ele me disse:

“Não tenha medo. Venha me conhecer.”

Então eu coloquei os pés em sua água fria

e logo em seguida deixei que meus joelhos se curvassem.

Sim, eu reverenciei o rio como um ato de preparação

ao mergulho.

Não sou nenhum nadador,

só que sei bater os braços para não me afogar.

E assim eu me distraí.

E assim eu senti que eu, feito de terra e água,

encontrei parte do meu lar.

Por que eu só moraria na terra se também sou água?

Ao me despedir do rio, ele me falou:

“Todos os seres podem nadar.”

 

Erich Fromm. Ter ou Ser? Trad. de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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