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Sétima Arte - O Diabo de Cada Dia


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 25/09/2020
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A segunda metade de setembro tem sido animada no mundo do streaming, várias estreias inéditas estão atendendo bem a demanda de quem tem, nos últimos tempos, apreciado a sétima arte no conforto do seu lar. Na semana passada a Netflix estreou um Suspense/Drama extremamente incômodo, mas absurdamente necessário. Um filme longo, pesado, mas amado e odiado, por quem já assistiu, na mesma intensidade. Sobre O Diabo de Cada Dia, você fica muito bem informado na Coluna Sétima Arte.

Por esse dias, ouvi algumas pessoas que assistiram ao filme reclamando que ele não é o que esperavam. Acredito que isso acontece porque ao passar pela interface da Netflix você se depara com imagens que mostram Tom Holland (o mais novo Homem-Aranha da Marvel) ou outra com Robert Pattinson (o futuro Batman da DC) e, desavisadamente você imagina: “poxa, deve ser um filme bacana, rápido, excitante, talvez no estilo super-herói, já que a Netflix tem investido muito nesse filão”. Quando começa a assistir, você acaba sendo surpreendido por um filme longo, violento, pesado e que ao final deixa você com um gosto bastante amargo na garganta. Ou seja, o filme é completamente o contrário do que muita gente espera, mas nem por isso pode ser taxado como um filme ruim.

Primeiro ponto a ser considerado é que esse filme é a adaptação cinematográfica de uma obra literária, tanto que o próprio autor do livro, Donald Ray Pollock, quem narra o filme. Quem é aficionado por cinema bem sabe o quão desafiadora é a função de roteirizar um livro para a tela grande. Ainda mais nesse caso em questão, pois o livro que dá origem a O Diabo de Cada Dia é dividido em capítulos em que cada um aborda uma personagem. A partir disso, pode-se dizer que o que se apresenta na tela é bastante aceitável, pois por mais que o roteiro, adaptado por Paulo Campos juntamente com o diretor Antonio Campos, seja longo, ele apresenta, mesmo que de forma superficial, o suficiente de cada personagem para que a história seja composta e desenvolvida. Isso quer dizer que você não terá tempo para se apegar ou se conectar com ninguém dessa trama, mas o desenrolar dos fatos faz com que você se importe e lamente por cada um deles.

Segundo aspecto que não pode ser negligenciado no filme é seu caráter de crítica ao fanatismo religioso. Algo que vem em boa hora para a sociedade brasileira, que vê cada vez mais lobos esconderem-se em peles de cordeiro sob o manto da religiosidade. É só ficar atento aos jornais, onde pastores, pastoras e padres, são apresentados por se envolverem em situações nada condizentes com suas funções. Uns envolvidos com política da forma mais corrupta, outros com desvio de dinheiro e, uma delas, até com o assassinato do marido. Não que a religiosidade seja algo ruim, mas é preciso ter um olhar atento sobre tudo, inclusive sobre ela. Os exemplos anteriores são o mundo real provando que o fanatismo é um problema e que, muitas vezes, indivíduos com um profundo desequilíbrio moral e ético usurpam a autoridade religiosa e se valem da fé alheia para cometerem inúmeras atrocidades.

Como a arte imita a vida, O Diabo de Cada Dia traz em seu enredo várias subtramas que, de uma forma ou outra, abordam esse fanatismo deturpado e suas consequências, costurando de forma muito eficiente a história de cada subtrama com o tema central. Em certo ponto, a crítica ao fanatismo pode até parecer exagerada, mas se você raciocinar um pouco mais verá que nas redes sociais ou na política brasileira, o fanatismo é algo muito mais presente do que gostaríamos, por isso, a partir disso o roteiro passa a ser muito mais crível.

Um terceiro e último aspecto a se considerar é seu caráter humano. Isso torna os acontecimentos muito plausíveis. Eles são chocantes, as cenas são horríveis e de uma crueza extrema, mas ao final de cada uma você tem a sensação de que muitos seres humanos são sim capazes de fazer essas coisas e que “o diabo de cada dia” na verdade, reside dentro das próprias pessoas, onde cada um é responsável por deixá-lo trancado e adormecido dentro de si.

Nesse sentido, o filme se torna incômodo porque apresenta a simplicidade, a humildade e até a mesmo a fé como elementos que permitem a manipulação, o desprezo e a humilhação por parte desses que agem como o diabo. As melhores pessoas da trama são sempre as que serão vítimas em maior ou menor grau daquelas que, cheias de si, se impõem sobre elas. Apenas para citar uma cena que demonstra isso, irei comentar sobre a revoltante sequência do fígado de galinha. Ao se aposentar o pastor de uma Igreja pede que uma senhora, avó do protagonista, traga um prato para a festa de boas-vindas do novo pastor, que é seu parente. Com pouco dinheiro, mas confiante em sua capacidade como cozinheira, ela compra o que é possível e dá o melhor de si para fazer um prato excelente. É revoltante ver o desfecho, pois o pastor utilizará um momento de pregação como pretexto para humilhar a mulher por causa de sua pobreza. Com o mesmo teor, mas resultados muito mais trágicos, outras histórias como essa vão se acumulando ao longo da trama, de maneira que o filme tende a apresentar a vingança como uma das poucas, senão a única, forma de revidar contra esses vilões cotidianos.

Nos aspectos técnicos o filme conta com um trabalho de câmera muito interessante, com closes e zooms de panorâmicas que ditam um clima bastante épico, ainda que fatalista à obra. Apresentando a cultura, os costumes e o sotaque do meio rural americano o filme acaba sendo tanto uma referência quanto uma homenagem a outros diretores que se enveredaram por essa temática, como os Irmãos Coen ou Cormac McCarthy. Para fazer tudo isso funcionar, Campos conta com um elenco de estrelas, todos extremamente competentes e comprometidos. Além dos já citados Tom Holland e Robert Pattinson – que com certeza interpreta com maestria a personagem mais infame e desprezível de sua carreira -, o elenco conta ainda com o talentoso Bill Skarsgård, com uma participação rápida de Mia Wasikowska, e ainda com Haley Bennett, além de outros nomes.

Vamos à trama! Ambientada em duas fases, entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, O Diabo de Cada Dia acompanha diversos e bizarros personagens num canto esquecido de Ohio, nos Estados Unidos. Cada um deles foi afetado pelos efeitos da guerra de diferentes maneiras. Entre eles, um veterano de guerra perturbado, um órfão, um casal de serial killers e um falso pregador.

Porque ver esse filme? Porque ele apresenta uma série de acertos, que vão desde o tom constante de terror psicológico, passando pela reconstrução de época perfeita, pela ilustração da pobreza extrema que é sempre esquecida ou maquiada em obras que retratam os anos 1950 e 1960, até chegar ao teor crítico que define a obra. Um filme necessário, daquele tipo que deve ser visto uma única vez na vida, mas que precisa ser visto. Prepare o estômago e boa sessão!

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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