Racismo e a Banalidade do mal
*Rogério Luis da Rocha Seixas
O título deste texto aparentemente expressa dois temas que não se encontram diretamente relacionados. Contudo, creio que inicialmente deve-se esclarecer o que vem a ser banalidade do mal. Este conceito foi cunhado pela filósofa judia-alemã Hannah Arendt, que após cobrir o julgamento de um criminoso nazista Adolf Eichmann em Israel, impressionou-se que um homem comum poderia ter cometido crimes horrendos sem ter a menor empatia ou noção de seus atos, como se exterminar milhões de vidas fosse uma ação banal, visando inclusive o cumprimento de ordens e objetivos determinados. Não se trata aqui de questão de remorso ou culpa, mas uma total noção de que há vidas que são descartáveis e, por isso, passíveis inclusive de eliminação física, sem necessariamente ser uma prática de mal no sentido religioso ou moral. Ao contrário, o que se percebe é que se pratica o ato de violência contra o considerado descartável como uma atitude banal, embora não se possa deixar de imputar a responsabilidade para aquele que o comete e condená-lo enquanto praticante de um mal que possa aparentemente se mostrar como banal, não que o seja por si mesmo.
Ao tratar sobre a banalidade do mal, Arendt se refere a experiência do Holocausto nazista, que não deixou de se embasar em uma forma de racismo promovido por um Estado genocida. Nestes dias marcados pela pandemia do Covid-19, nos Estados Unidos da América, um homem negro morreu não pelo coronavírus, mas por razão de outro vírus: o racismo. George Floyd foi morto por policiais de uma forma banal, isto é, como se fosse alguém descartável, passível de ser eliminado com requintes inclusive de uma violência muito torpe. O impressionante é como as autoridades norte-americanas responderam ao ocorrido: uma punição apenas formal. Como mais uma morte de um negro. Não por acaso, em plena pandemia e sendo um dos países mais afetados, muitos foram e estão nas ruas. Várias pessoas estão exigindo exatamente que este mal praticado contra Floyd, que expressa um mal sofrido por muitos cidadãos negros norte-americanos, não signifique uma prática banal de que alguém pode ser morto por ser considerado sub-humano pela sua cor e condição social. Mas, como o racismo se sustenta e sua prática pode se tornar algo banal e aceitável no seio de uma sociedade dita democrática?
Silvio Luiz de Almeida afirma que o racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais. É, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida e, nesta condição, torna-se intrínseca à sociedade, que inclusive é conivente com a eliminação de indivíduos ou grupos considerados marginais ou inúteis para o corpo social. Assim, o racismo estrutural, que tem o racismo como normalidade, funciona tanto como uma ideologia quanto como uma prática de naturalização da desigualdade, algo marcante em nossa sociedade brasileira, mas que como podemos observar com o assassinato de Floyd, se constitui como um grave problema em outras sociedades como no caso a norte-americana.
Almeida alerta que pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não pode servir de álibi para racistas praticarem o mal banal como fez Eichmamm. Pelo contrário: entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas, e a eventual prática de violências que são vistas como normais ou banais.
Para Grada Kilomba, a pessoa negra e seu corpo são usados como uma espécie de tela que projeta aquilo que o corpo branco não é. O corpo negro é uma outridade que é recusada como inimigo, especialmente se pensarmos em cidades litorâneas e predominantemente negras, como Salvador, que reservou o trabalho braçal e atinge com inúmeras agressões os corpos de homens e mulheres negras. O racismo assim é uma problemática branca, mas que projeta violências contra os corpos de homens e mulheres negras.
Desta forma, o assassinato de Floyd ou de jovens negros em nossas comunidades, estão mais relacionados do que aparentam, pois como Arendt alerta com a ideia de mal banal, qualquer um de nós pode participar do extermínio de indivíduos ou grupos por questões raciais ou outros tipos de preconceitos e discriminações, enforcando, asfixiando, atirando ou aceitando passivamente tal situação que nos coloca sempre mais próximos da barbárie.
Nádia Souki. Hannah Arendt e a banalidade do Mal. Belo Horizonte/MG: UFMG, 1998.
Grada Kilomba. Memórias da Plantação. Rio de Janeiro: ed. Cobogó, 2019.
Silvio Almeida. Racismo Estrutural. São Paulo: Ed. Pólen, 2019.