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Parte 2 – “Sem querer querendo: Memórias”, de Roberto Gómez Bolaños


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 24/06/2024
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Roberto Gómez Bolaños é simplesmente o criador de Chaves e Chapolin Colorado. No meu caso, esses dois personagens compõem os melhores momentos da minha infância, pois, quando eram exibidos no SBT, minha família (pai, mãe e irmã) se reunia para poder rir. Mesmo hoje, ou sobretudo hoje, faço de tudo para assistir ao “garoto do barril” e me divertir. A respeito de todo o seu objetivo de vida enquanto escritor e comediante, declarou Bolaños no final de seu livro de memórias “Sem querer querendo”: “(...) tentar proporcionar ao público momentos de saudável descontração, pausas para descanso e pelo menos algumas migalhas de felicidade.” (BOLAÑOS, 2021, p. 417). Por esse grande objetivo eu expresso: obrigado, Roberto!

É sempre com um misto de curiosidade e gratidão que me aproximo do universo de Chespirito (apelido dado pelo diretor de filmes Augustín P. Delgado, que significa “pequeno Shakespeare”, devido à qualidade dos textos de Bolaños). Foi assim com o primeiro livro de Bolaños, “O diário do Chaves”, com “Sem querer querendo” e também com a exposição feita em São Paulo. Sobre “Chaves A Exposição”, iniciada em janeiro de 2024 no Museu de Imagem e Som (MIS), ela foi a maior do mundo, contendo itens originais como a marreta biônica de Chapolin e as vestes de Chaves, Seu Madruga, Bruxa do 71, etc. Admito que me emocionei por estar ao lado de ícones tão relevantes para mim. Por essa razão, colocarei nesta resenha-nostalgia fotos da exposição, para que o leitor fique ainda mais próximo da magia de Chespirito.

“Sem querer querendo”, conforme dito, é o livro de memórias do criador de Chaves e Chapolin, e, para além da esfera dessas duas grandes criações, o autor narra em detalhes sua infância, adolescência, vida adulta, casamentos, filhos, produções culturais (publicitárias, esquetes, filmes, direções de novelas), e também a história do México, já que Bolaños a viveu intensamente. A quem ler “Sem querer querendo” terá, a um só tempo, motivos para rir e para se emocionar, motivos para querer criar personagens para as pessoas se divertirem e para ser mais atento ao dia a dia.

1º Motivos para rir: trata-se de um relato cuidadoso de um grande escritor aclamado pelo seu bom humor. No entanto, um humor que buscou ser o mais puro e livre de preconceitos possível (apesar das constantes chacotas a respeito do peso do Seu Barriga, da altura do Professor Girafales e da magreza do Seu Madruga). Conforme afirma Bolaños: “Nunca houve discriminação em nossos programas. Mesmo no Chapolin, se ele enfrentava um inimigo, este não era estrangeiro nem era de uma raça ou religião diferente. Nunca nada disso se criticava – no Chaves era igual.” (BOLAÑOS, 2021, p. 12).

2º Motivos para se emocionar: Bolaños era uma pessoa como qualquer outra, que teve facilidades e dificuldades na vida. Ao lado das dificuldades se encontra uma infância praticamente sem pai, já que este faleceu muito cedo em razão de bebidas e mulheres (seus vícios).

3º Motivos para querer criar personagens: se expõe em detalhes como se deu a criação de Chaves e Chapolin, mas, também, de Chimoltrúfia (personagem de Dona Florinda), Botijão (interpretado por Edgar Vivar, o maravilhoso Seu Barriga), e também a criação de seus filmes, como “El Chanfle”. Cada personagem era um universo novo criado. Também nesse horizonte se encontram os comediantes internacionais preferidos de Bolaños: Charles Chaplin, e o Gordo e o Magro; e, do lado dos mexicanos, Mario Moreno “Cantinflas”, Joaquín Pardavé e Germán Valdés “Tin Tan” (irmão de Ramón Valdés, o icônico “Don Ramón”, ou, para os brasileiros, “Seu Madruga”).

Seu Madruga (tradução brasileira dada pelo genial dublador e diretor de dublagem brasileiro Marcelo Gastaldi, que dará as vozes para Chaves e Chapolin). Última aparição no seriado: “Cantando na vila”, de 1982

Que alegria é escrever uma resenha-homenagem sobre algo que me é fundamental, Chaves e Chapolin. Mas, quando essas séries foram criadas e exibidas no Brasil? Criação: Chapolin, 1970; Chaves, 1972. Exibição no Brasil: Chapolin, 20/08/1984; Chaves, 24/08/1984, este, por meio do episódio “O matador de lagartixas”. Que feliz dia foi aquele que o SBT disse: “Vamos exibir essas séries”.

Minha esposa e eu em “Chaves A Exposição”.

Como se constata, da criação à exibição no Brasil houve um tempo de mais de 10 anos, mas, esse atraso não representa um problema para os seriados no Brasil, pelo contrário. O SBT comprou um lote reduzido de episódios de ambas as séries e os exibiu à exaustão. De episódio em episódio o Brasil se encantou pelo herói desastrado e pelo garoto do barril, a ponto de que até hoje atrai para as suas histórias pessoas de todas as idades. Mas, à parte isso, o que aconteceu muito com o grupo de atores de Bolaños foi a exibição de shows por toda a América Latina, como Argentina, Paraguai, Peru, Colômbia e Venezuela. No Brasil, porém, o grupo não se apresentou, seja por causa do idioma ser diferente (e não atraia a Bolaños a dublagem simultânea ou mesmo o playback), seja por causa do conturbado clima político de então (o horrível governo de Fernando Collor). Porém, ao menos uma vez Bolaños esteve no Brasil, no caso, em Foz do Iguaçu, para ver duas maravilhas, uma da natureza e outra da engenharia: as Cataratas e a Usina de Itaipu. E por que dessa visita pontual? Porque o grupo ia se apresentar na cidade vizinha, Cidade de Leste, e aproveitou a estadia para conhecer as referidas atrações. A título de curiosidade, meus dois avôs, Waldemar e Adelino, trabalharam nas origens da usina binacional, na década de 1970.

Marreta biônica, Corneta paralisadora, Pílulas de nanicolina e Anteninhas de vinil. Itens originais

Ao longo de “Sem querer querendo” se vê em detalhes como se dava o mundo de criação de Bolaños. Ele, que chegou a ir para a Faculdade de Engenharia, desistiu do curso logo no início, contando um episódio marcante e emocionante que, mesmo que extenso, vale a menção integral.

“Pouco antes, no final do primeiro ano da Faculdade de Engenharia, recebi a lamentável notícia de que havia reprovado em duas disciplinas: mecânica e topografia. Por isso, tive de solicitar dois exames extraordinários, no primeiro dos quais (de mecânica) tive a benevolência do examinador, nada menos que o eminente cientista professor González Graf, que me deu a indulgente nota 8. Mas na outra matéria (topografia) aconteceu o contrário comigo; o examinador, professor Esteban Salinas, deu-me um 5 que me pareceu totalmente injusto, pois confirmei com um amigo (Jorge Casas Lecona, que tinha feito o mesmo exame) que o meu trabalho deveria ter recebido pelo menos a nota 7. Assim, decidi que deveria reclamar com ele imediatamente. Se bem que, para dizer a verdade, não fiz essa reclamação tão “imediatamente” como havia proposto, pois a fiz precisamente na noite daquele baile em que Pina Pellicer havia pisado cruelmente no meu orgulho. E a reclamação, é claro, foi feita quando esse orgulho foi regado a um bom número de cubas-libres.

Encontrei o professor no bar instalado embaixo da escadaria do Palácio da Mineração, local aonde fui com a intenção de acrescentar outra cuba ao recipiente do meu copo, depois de ter “dirigido” a orquestra de Juan García Esquivel enquanto ele dançava com minha namorada e me fazia dançar.

- Meu exame merecia pelo menos um 7 – eu disse ao professor Salinas quando o alcancei. O tom da minha voz era áspero e com um volume que permitia ser ouvido por todos ao nosso redor.

- Provavelmente a nota desse exame deveria ter ficado entre 6 e 7 – respondeu-me o professor Salinas.

Sua resposta foi dada com uma naturalidade desconcertante, o que me fez hesitar um pouco antes de exclamar com a mesma arrogância inicial:

- E então por que diabos o senhor me deu um 5?

- Porque não é conveniente para você estudar essa carreira.

A explicação foi ainda mais intrigante do que a primeira resposta à minha afirmação. Mas minha perplexidade foi superada pela raiva que me causou o que eu considerava a pior injustiça, então segurei o ilustre professor pelas lapelas, enquanto dizia ameaçadoramente:

- Sabe o que vou fazer?

- Suponho que vá tentar me bater – respondeu ele com uma naturalidade irritante. – E talvez consiga – ele acrescentou -, já que você gosta de boxe, e eu não me destaco nos esportes. Mas isso não vai ajudar você a superar os obstáculos que você vai encontrar no estudo desse curso.

Para falar a verdade, não lembro se foram exatamente essas as palavras que o professor Salinas usou naquela ocasião, mas tenho certeza de que foi esse o sentido de sua resposta. Então a perplexidade venceu a coragem novamente; e ainda mais quando ele acrescentou, intrépido:

- Veja bem: isso não significa que você não tenha capacidade para estudar. E é até provável que tenha facilidade para matemática e outras disciplinas semelhantes, mas garanto que seu futuro está em outros territórios.

Também não consigo lembrar se foi a formulação exata com o qual ele continuou seu conselho, mas sei que, felizmente, minha agressividade acabou a partir daquele momento, de modo que o confronto não passou disso. E também sei que muito, muito tempo depois, enquanto gravava um dos meus programas na Televisa San Ángel, recebi a agradável visita de um professor, já avançado na idade, que me disse:

- Sou o engenheiro Esteban Salinas, professor da Faculdade de Engenharia. Por acaso você se lembra de mim?

- Por acaso, não – respondi. – Lembro-me do senhor com todo detalhe e com a maior gratidão.

O professor sabia o que eu queria dizer. E, depois de relembrar os velhos tempos, unimo-nos em um abraço caloroso.” (BOLAÑOS, 2021, p. 108-110).

O que poderia se converter em ressentimento, se converteu em força criativa. Na verdade, Bolaños já era um artista, que escrevia e pintava com frequência e com qualidade. A partir da desistência universitária passou a se dedicar por completo à escrita e aos filhos, quando tempos depois se casou com Graciela. Quanto à dedicação aos filhos, é bonito ver como Roberto narra a vida deles e dos netos com vários detalhes em suas memórias.

Contudo, nem tudo são glórias, como se lê em “Sem querer querendo”. Roberto se separou de Graciela para viver com Florinda. Há as dificuldades próprias da profissão, desde boicotes até empecilhos para conseguir um teatro para se apresentar. E há os conflitos entre os atores, especialmente relatados os do elenco de Chaves, que vão desde saídas temporárias, como as de Rubén Aguirre, Ramón Valdés e Maria Antonieta de las Nieves, até rupturas definitivas, como a de Carlos Villagrán. Sobre a de Villagrán, dói ler a divergência, pois ele queria sair para atuar de modo solo como Quico, como se este fosse sua exclusiva criação, ao que foi recusado por Bolaños, que aceitava a atuação, mas, desde que constasse que ele, Bolaños, fosse o criador. Vale fazer a ressalva, porém, que essa perspectiva se dá sob o viés do autor de “Sem querer querendo”.

A representação de onde Chaves vendia seus sucos
Ao lado da “Tienda do Chavo”, a barraca de sucos de Quico. Vale destacar que o primeiro nome do bochechudo era Frederico, sendo que este nome terminar com “rico” foi proposital

Apesar dos pesares, que não são marginalizados por Bolaños, ainda que em uma ou outra ocasião, ou em várias, não mencione os nomes dos querelantes, o Chespirito seguia a sua vida de comediante e escritor, tanto que dirigiu filmes (foi diretor de cinema da Televisa, produzindo dez ao todo) e novelas (como a “Milagre e magia”, escrita e estrelada por Florinda Meza), como atuando em teatros, a exemplo da peça “11 y 12”, que ficou em cartaz por mais de 7 anos no México. E é por causa dessa vida ativa, que o levou a diversos países, que hoje se encontra em seu túmulo, na Cidade do México, os seguintes dizeres:

“... À vida, por tanto

tenho de agradecer

que por meu duplo afazer

escritor e comediante

é o riso meu constante

e fascinante prazer.”

         Em outra oportunidade falaremos mais sobre o Chespirito e, em especial, sobre o “Chaves”, mas, por enquanto, só posso dizer: obrigado por tanto!

 Referências

Roberto Gómez Bolaños. Sem querer querendo: Memórias. Trad. de Monique D’Orazio. Contagem, MG: Estética Torta, 2021.

Fórum Chaves: https://www.forumchaves.com.br/

Canal Vila do Chaves: https://www.youtube.com/@CanalViladoChaves

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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