“Didática Magna”, de Comenius
A obra “Didática Magna”, de Comenius (1592-1670), foi escrita no século XVII e é um clássico da educação. Toda vez que leio um clássico sinto que estou diante de uma voz tão poderosa a ponto de que o tempo, por mais importante que seja, é posto em perspectiva. Com a “Didática Magna” é isso que ocorre, pois, ainda que seja uma obra de quatro séculos atrás, conversa diretamente com o século XXI, em especial com quem é professor.
Mas, afinal, o que significa a palavra “didática”, que também é uma disciplina essencial das licenciaturas? É a arte de ensinar – e de aprender. Tendo isso em vista, não ao acaso se encontra na obra “Grande sertão: veredas”, que “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.” (ROSA, 2020, p. 224). No caso de Comenius, ele se propõe, em primeiro lugar, a formar escolas cristãs que encaminhem as pessoas para o céu, e, em segundo, pessoas úteis à vida em sociedade e ao Estado. Para que tais objetivos sejam possíveis é preciso que todos – meninos e meninas – sejam instruídos, tanto para a leitura das Sagradas Escrituras quanto para poderem administrar bem a vida doméstica.
Comenius é um autor que nasceu na Morávia (uma região da Europa Central que atualmente encontra-se na República Tcheca) no início do período histórico denominado de Modernidade, em que as grandes navegações e a ciência moderna avançaram. As grandes navegações: mundos foram descobertos; a ciência moderna: métodos foram criados/explorados/desenvolvidos e tecnologias surgiram, como a que favoreceu a impressão massiva de livros. Acerca da impressão tipográfica, que tanto impressionou Comenius, o educador queria que a didática se tornasse uma didacografia, pois, por analogia, o professor imprimia os saberes nas mentes dos alunos.
Mas, de que forma se daria a impressão dos saberes anteriores? Por meio de um rigoroso e extenso método baseado na natureza. Para Comenius, o professor, assim como o arquiteto e o arboricultor, deve observar a lógica da natureza e entender como que a vida, no caso, o ser humano, se desenvolve. Assim como o arquiteto observa a dinâmica das madeiras e do solo, e o arboricultor sabe como se dá o desenvolvimento das árvores, o professor deve saber cultivar, com prazer e com destreza, a sua matéria-prima: o ser humano. Tendo isso em vista é que o educador pretendia que a educação fosse prazerosa e não dada a castigos (estes só deveriam existir em casos extremos, sobretudo quando os alunos praticassem impiedades).
Como se trata de uma obra de didática, nada mais coerente do que falar sobre a figura do professor, o que é feito em detalhes. Um dos temas abordados é acerca da amabilidade. A escola não pode ser sinônimo de provação, pois, se assim for, o aprendizado será prejudicado. Nesse horizonte, registra Comenius (2011, p. 169) no capítulo intitulado “Princípios em que se funda a facilidade de ensinar e de aprender”: “Os mestres conquistarão com tanta facilidade o coração das crianças que elas terão mais vontade de passar o tempo na escola do que em casa, se forem afáveis e doces, se não as assustarem de modo algum com a austeridade, mas, ao contrário, as atraírem com afeto, gestos e palavras paternais; se exaltarem os estudos que estejam fazendo, por sua importância, por sua facilidade e pelo prazer que proporcionam; se, portanto, elogiarem os mais diligentes (premiando as crianças até com maçãs, nozes e docinhos); se, aproximando-se delas, mesmo em público, lhes mostrarem coisas que deverão aprender no futuro, como pinturas, instrumentos ópticos, geométricos, globos celestes e semelhantes, que despertam a sua admiração; se, ademais, mandarem através delas alguns recados aos pais, numa palavra, se os tratarem com amabilidade.”
Conforme dito, o objeto central de Comenius, ele próprio um pastor protestante, era formar escolas cristãs, de modo que a vida presente, terrena, fosse uma preparação para a vida futura, celestial. Assim, a Bíblia é a fonte mais importante tanto em “Didática Magna” quanto para a formação do seu método pedagógico e de formação de escolas/fases do aprendizado. Quanto ao método, que se traduz pelo caminho a seguir para se atingir um objetivo, o fim é a instrução qualificada em letras e em ciências envolta em religiosidade (moralidade e piedade). Quanto às escolas/fases, o educador as divide em quatro: 1ª Escola Materna, 2ª Escola Vernácula, 3ª Escola Latina e 4ª Academia.
Cada uma das escolas teria duração de seis anos. Na primeira, que se daria no âmbito familiar, a principal educadora seria a mãe. Na segunda, que deveria ter a presença de meninos e meninas, deveria se aprender o essencial de letras, religião e ciências. Na terceira, o aluno deveria sair com domínio do essencial da vida em sociedade e também com saberes sólidos em alguns idiomas (por exemplo, na língua materna, em latim e em grego). Já a quarta, a Academia, deveria preparar os governadores, os teólogos, os juristas e os médicos, e, ao fim desta etapa, um acréscimo valioso: viagens, pois, para conhecer o mundo viajar também é importante. Vejamos o que diz Comenius (2011, p. 353) sobre a essência da Academia: “I. Que nelas sejam feitos estudos realmente universais, de tal modo que nada haja do campo das letras e do saber humano que ali não seja abordado. II. Que se empreguem os métodos mais fáceis e mais seguros para que todos os que as frequentem adquiram sólida instrução. III. Que o acesso aos cargos públicos seja reservado apenas aos que tenham atingido a meta estabelecida e sejam dignos e capazes de ter nas mãos o governo das coisas humanas.”
Quando se termina a leitura da “Didática Magna” se percebe o quão grande e ampla ela continua sendo. O interesse original de Comenius era dessa obra servir como preâmbulo à pansofia (saber sobre tudo), a ponto dele criar na referida obra um “panmétodo”. É questionável se o autor atingiu o seu objetivo, o que foi inclusive objetado pelo contemporâneo de Comenius, o seu amigo e erudito Joachim Hübner; também são questionáveis algumas ideias, como a de que o professor poderia ensinar centenas de alunos de uma só vez sem dificuldades se o seu método fosse empregado (a experiência concreta no magistério diz fortemente que não, independente de método); mas, para além dessas críticas, o que permanece é o poder argumentativo e a atemporalidade das ideias daquele que é considerado o pai da didática moderna.
O que eu posso afirmar, após ter lido diversos clássicos e diversos livros contemporâneos de diversas áreas, é que certos livros têm o poder de mexer profundamente com o leitor, e não só com indivíduos em particular, mas com grupos e com épocas. Assim foi com Sócrates, autor citado por Comenius, que considerava mais importante que o governo em si o ato de formar pessoas para o governo. O teólogo, filósofo, músico e médico alemão Albert Schweitzer (2013, p. 58), em “Filosofia da Civilização”, dizia que Kant e Hegel moveram mais sociedades do que quaisquer governantes. E assim é com Comenius e a sua “Didática Magna”, uma grandeza que deve ser lida.
Albert Schweitzer. Filosofia da civilização: Queda e reconstrução da civilização. Cultura e ética. Trad. Petê Rissatti. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
Comenius. Didática Magna. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.