“O mal-estar na civilização”, de Sigmund Freud
“O mal-estar na civilização” (1930), de Sigmund Freud, é uma obra que acompanha a minha formação, sendo que a li seis vezes. Em cada releitura é como se uma obra nova se me apresentasse. Mas, por que esse livro me acompanha? Porque ele toca em feridas profundas da humanidade, ainda que esta busque escondê-las; porque ele lê o ser humano de uma forma trágica, não trazendo fórmulas para a felicidade. Com essas justificativas significa que não almejo a felicidade? É certo que almejo, porém, não superficialmente.
E o que seria esse “mal-estar” ou “desconforto” investigado? Algo constitutivo do ser humano, o que significa que sequer é possível escondê-lo, pois ele atua de modo inconsciente, revelando-se por meio de sintomas e atos falhos (vide “A psicopatologia da vida cotidiana”, obra de 1901 de Freud). Para ser direto: a felicidade é um alvo difícil de ser atingido. E por que essa dificuldade? Freud apresenta três fontes pelas quais a infelicidade ataca o ser humano, e, por serem didaticamente arquitetadas, valem ser postas junto ao seu contexto maior:
“É absolutamente inexequível, todo o arranjo do Universo o contraria; podemos dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha no plano da “Criação”. Aquilo a que chamamos “felicidade”, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem prosseguimento, isto resulta apenas um morno bem-estar; somos feitos de modo a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas possibilidades de felicidade são restringidas por nossa constituição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo um tanto supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.” (FREUD, 2018, p. 30-31).
A citação anterior, trágica, pode se desdobrar em quatro partes:
1ª Ser feliz não se acha no plano da Criação. Parece que, apesar toda luta para ser feliz, apesar de toda busca espiritual (para quem é religioso) e apesar das alegrias momentâneas, a angústia e o medo são hóspedes mais do que presentes no dia a dia. Vide o tanto de pedidos de oração entre os crentes.
2ª O próprio corpo. O ser humano possui um corpo que até pode se apresentar robusto, e de fato em algumas pessoas o é. Porém, muitas enfermidades surgem e, quando a morte aparece, é impossível conter a sua lógica (é esse um dos derradeiros tópicos de “A morte é um dia que vale a pena viver”, de Ana Claudia Quintana Arantes). Vide os milhares casos de cânceres em estágio terminal.
3ª O mundo exterior. Por mais que o ser humano, devido à técnica, controle significativamente as forças da natureza, ninguém há de duvidar de que ela é mais forte do que qualquer pessoa feita de carne e osso. Vide as catástrofes ambientais como as enchentes.
4ª Relações com outros seres humanos. “Amai ao próximo como a ti mesmo”, ao mesmo tempo que é um belo mandamento, também é trágico, pois é dificílimo amar, em um sentido prático, o próximo. Discussões, divórcios e guerras são exemplos do tanto de problemas existentes na vida em sociedade. Vide o tanto de demandas judiciais protocolizadas.
Eu admito que relutei para escrever esta resenha, pois o tema é por demais árido. Mas, faz parte da minha honestidade intelectual não esconder problemas essenciais. E é sobre problemas essenciais que “O mal-estar na civilização” aborda. Nessa seara, Freud apontará algo que volta e meia lhe aparecia, mas que não tinha recebido o devido cuidado: o instinto de morte. Se, por um lado, o ser humano tem um forte instinto de vida, que visa a conservação, por outro lado, segundo Freud, ele tem um instinto de morte, que visa o retorno ao inorgânico. Segundo imagens trazidas do universo mitológico, trata-se da disputa entre Eros e Tanatos, deus do amor contra aquele que é a personificação da morte. Quem vencerá? Eis uma grande questão colocada por Freud ao final da obra. Como esse tema é importante em “O mal-estar na civilização”, vale a pena trazer um trecho integral:
“Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao fazê-lo. Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de permitir ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento. Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade. O povo judeu, espalhado em toda parte, conquistou desse modo louváveis méritos junto às culturas dos povos que o hospedaram. Infelizmente, todos os massacres de judeus durante a Idade Média não bastaram para tornar a época mais pacífica e segura para esses camaradas cristãos. Depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-se uma consequência inevitável. Os romanos, cuja organização estatal não se baseava no amor, desconheciam a intolerância religiosa, apesar de entre eles a religião ser assunto de Estado e o Estado ser permeado de religião. Tampouco foi um acaso incompreensível que o sonho de um domínio mundial germânico evocasse o antissemitismo para seu complemento, e podemos entender que a tentativa de instaurar na Rússia uma nova civilização comunista encontre seu apoio psicológico na perseguição à burguesia. Só nos perguntamos, preocupados, o que farão os sovietes após liquidarem seus burgueses.” (FREUD, 2018, p. 80-82).
Dentre tudo o que foi dito na citação anterior, dois pontos merecem destaque:
1º “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade.” Eis um pensamento difícil, senão impossível de refutar. Canais de televisão, religiões e as fofocas do dia a dia dão conta de corroborar a premissa freudiana. Quantas vezes há a criação de inimigos públicos gratuitamente? Quantas vezes há disputas vaidosas entre pessoas religiosas? Quantas vezes a vontade de detratar alguém move conversas entre amigos?
2º “Infelizmente, todos os massacres de judeus durante a Idade Média não bastaram para tornar a época mais pacífica e segura para esses camaradas cristãos.” Dói ler esse trecho, pois eu, sendo cristão, fico desconfortável. Mas, o meu desconforto não pode me levar a contradizer verdades históricas. Freud era judeu e, poucos anos após “O mal-estar na civilização”, seu povo passou por um catastrófico período da história, o Holocausto. E muitos que se colocavam a executar a chamada “Solução Final” se consideravam cristãos. O Holocausto consta claramente no programa de Hitler exposto na obra “Minha Luta”. Nos termos do genocida: “A natureza sempre se vinga inexoravelmente de todas as usurpações contra o seu domínio. Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador-Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus.” (HITLER, 2016, p. 55). Mas, como a tragédia e os paradoxos humanos parecem não ter fim, dói também ver o programa de extermínio por parte de Israel contra os palestinos iniciado em 2023; a objeção “mas, os israelitas primeiramente foram atacados” não justifica a resposta desproporcional: a legítima defesa tem de ser legítima.
Os dois pontos anteriores são exemplos de instinto de morte, tema até hoje controvertido entre os psicanalistas, pois muitos não aceitam a existência desse instinto em apartado ao instinto de vida.
Diante do exposto, que por si só gera inúmeros problemas para a psicanálise, para a sociologia e para a história, Freud também entra na esfera da educação, pois, para ele, esta era indiferente e negligente diante de dois temas fundamentais: a sexualidade e a agressividade. Dito em outras palavras: para Freud, a educação, em seu longo currículo, não trata adequadamente nem a sexualidade e nem de como que o ser humano deve lidar com a agressividade. Eis os termos do pai da psicanálise:
“O fato de ocultar ao jovem o papel que a sexualidade terá em sua vida não é a única recriminação que se deve fazer à educação atual. Ela também peca em não prepará-lo para a agressividade, de que ele certamente será objeto. Ao soltar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos. Torna-se aí evidente um certo abuso das exigências ética. A severidade destas não prejudicaria muito, caso a educação dissesse: “Assim deveriam ser os homens, para serem felizes e tornarem os outros felizes; mas é preciso ter em conta que eles não são assim”. Em vez disso, fazem o jovem acreditar que todos os demais cumprem as prescrições éticas, que são virtuosos. Nisso é fundamentada a exigência de que ele também o seja.” (FREUD, 2018, p. 106-107).
1º A sexualidade. De fato, desde a infância, passando pela adolescência e a vida adulta, a sexualidade é um grande tema a ser trabalhado. A “ordem” de um instinto tão poderoso pode salvar o ser humano de neuroses, o que é um dos grandes tópicos da psicanálise. E o que pode fazer a educação por esse tema? Muito, pois, seja por meio do currículo, seja por meio de conversas honestas dos educadores, o estudante pode se conhecer melhor, o que passa pela esfera não apenas da mente, mas também do corpo.
2º Agressividade. Não necessariamente a agressividade se converte em violência, afinal, é preciso em diversas situações da vida colocar limites ao outro por uma questão de respeito próprio. Mas, se a pessoa não se conhece, a agressividade facilmente pode se tornar violência. E o que a educação pode fazer por isso? Muito. A uma ofensa recebida de um colega ou até mesmo de um professor (o que não deveria ocorrer, mas, ocorre), a pessoa pode aprender a responder (idealmente, o professor pode e deve ser o mediador desse processo); o que não pode, ainda que ocorra, é a pessoa se silenciar e depois explodir ou se implodir.
É interessante ver, ao longo da obra, que Freud estava incomodado com tudo o que escrevia, considerando seu texto repetitivo, por não trazer nada de original (exceto a questão do instinto de morte). Por causa disso, o autor pede desculpas ao leitor. Eu, enquanto leitor assíduo dessa obra, posso, dizer: “Não há razões para pedir desculpas.” Mas, à parte esse incômodo do psicanalista, ele nos presenteia com mais angústias ao final da obra, o que não poderia ser diferente:
“A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas “potências celestiais”, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente mortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?” (FREUD, 2018, p. 121-122).
Como leitor de Freud no século XXI, ainda tenho a pergunta do pai da psicanálise como um problema em aberto, ora tendendo a Eros, ora a Tanatos. Como poderia ser diferente? O fato é que por tudo o que foi exposto, Freud é alguém que resiste ao tempo, sendo que a cada dia, assim como Homero ou Virgílio, amanhece mais jovem.
Adolf Hitler. Minha luta. Trad. de Klaus von Punchen. São Paulo: Centauro, 2016.
Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2019.
Sigmund Freud. Obras completas, volume 5: Psicopatologia da vida cotidiana e Sobre os sonhos (1901). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
____________. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.