Coluna Travessias: “As impressões das pontas dos dedos de Mainha no cuscuz”, de Jacilene Cruz
Uma das declarações de amor aos livros mais bonita foi dita pelo escritor argentino Jorge Luis Borges: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”. Deve ser por querer estar mais perto do paraíso que compro tantos livros.
À parte a brincadeira anterior[1], é preciso dizer que o livro de Jacilene Cruz, que tive a honra de escrever o prefácio, é um trabalho que nos aproxima do paraíso almejado por Borges, pois é bem escrito, repleto de imagens e traz contentamento ao leitor, ainda que os temas da escritora sejam, vez por outra, áridos.

Registro feito por Rosângela Figueira
1º O livro é bem escrito. Conheci Jacilene Cruz ao ser seu professor no Mestrado em Educação na Universidade Estadual de Roraima (UERR) e logo no primeiro contato com a sua escrita percebi que estava diante de uma pessoa que tinha uma relação diferente com as palavras. Não perdi tempo e a incentivei a escrever mais e mais e o resultado é o livro aqui em questão.
2º O livro é repleto de imagens, a começar pelo título, que faz referência aos polegares de sua mãe, carinhosamente chamada de “Mainha”, e a um dos pratos típicos do Nordeste, o cuscuz. A autora há anos mora em Roraima, mas, é natural da Bahia. O fato é que a sua poesia recebe um olhar apurado sobre o cotidiano, extraindo o extraordinário em meio ao comum. Para complementar o seu rico olhar, Jacilene Cruz ainda se vale de fotografias de Rosângela Figueira, a minha mãe.
3º O livro traz contentamento ao leitor, pois se trata de um trabalho feito com esmero, pensado e repensado, de modo que as palavras foram caprichosamente colocadas. Artista que é, das letras e da costura, sabe tecer poesias de modo que mesmo em meio a dores, como nas poesias “Moïse” e “Julieta”, exista beleza e sensibilidade.

Eu acompanhei todo o percurso da escrita de “As impressões das pontas dos dedos de Mainha no cuscuz”, ou quase todo, e como sou um entusiasta do livro impresso e do livro enquanto um conjunto harmônico, lhe sugeri a publicação por uma editora que eu já havia publicado um livro, o “Versos de Varsóvia”. O resultado? Uma recepção imediata e calorosa do editor Claudinei Vieira, da Desconcertos Editora, e o livro que agora se encontra ao leitor. Quanto à capa, foi feita entre idas e vindas entre a autora e um querido ex-aluno e artista, Miguel Back, que também já preparou capas para os meus livros. Logo se vê o quão cuidadoso e artesanal foi o processo de criação do livro de Jacilene Cruz.
Para que o leitor possa sentir um pouco do gosto da poesia da escritora nortista-nordestina, transcrevo dois poemas. Com isso, espero que você possa se encantar por uma escrita que me atraiu desde o primeiro contato.
“MOÏSE
Vai embora
Tuas raízes
Ainda não fincaram terra adentro
Foge
Aumenta teus passos
Apaga teu rastro
Não deixe que as cinzas
Do teu cigarro alado
Permitam te encontrar
Chora
Salga a tua carne
Não alimente mais os brancos abutres
Que insaciáveis
Estão a te devorar
A estrada está deserta
Segue
Não sinta o cheiro das flores
Sequer pense no caminho
Apenas vá
As cordas que te prendem estão frouxas
Abandona essa terra branca
Que está a te matar”
“COENTRO E CEBOLINHA
Não entornemos o caldo agora
Ainda há muita fome para ser saciada
Primeiro
dosemos o sal
Coloquemos o coentro e a cebolinha
Um pouco do colorau e a vida desperta
Depois
depois do caldo temperado
tomemos!”
Jacilene Cruz. As impressões das pontas dos dedos de Mainha no cuscuz. São Paulo: Desconcertos Editora, 2024.
Sigmund Freud. S. O chiste e sua relação com o inconsciente. (1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[1] Contudo, quanto à brincadeira, disse Freud (2010) em “O chiste e sua relação com o inconsciente”: “Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”.