“Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak
Ailton Krenak, um líder indígena do povo Krenak, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, questiona o leitor logo nas primeiras linhas: o que é, afinal, a humanidade? Ninguém pode responder uma pergunta desse nível de modo apressado, sob o risco de tomar uma rasteira. A rasteira, contudo, vem mesmo assim, até porque uma imagem que é recorrente no livro é a de que nós estamos em queda. Porém, quem é esse “nós”? Para Ailton Krenak, ao a humanidade ocidental elevar o ser humano e rebaixar a natureza, há o princípio errôneo de humanidade enquanto o “nós” e o restante enquanto coisa, enquanto “eles”, o que tantas vezes gerou um “nós contra eles”. Essa dicotomia é um pensamento errado que promove o fim do mundo, enquanto que Krenak quer outro horizonte, adiar o fim do mundo.
É preciso estender um pouco mais a ideia do parágrafo anterior, com a questão: quais as consequências da oposição entre ser humano e natureza, entre povos civilizados e povos bárbaros? Trata-se do surgimento das dicotomias: luz versus trevas, ricos versus pobres, saudáveis versus doentes, dentre outras. O trágico é que a luz é ela própria um carro-chefe para escurecer o mundo, deixando-o sem vida, posto que luz acaba se confundindo com progresso, com técnica, com fábricas, com destruição da natureza.
O capitalismo, em sua ânsia por engolir o mundo, termina por ser o fim do ser humano. Estou aqui a promover o fim da história? Não, até porque, se assim fosse, o livro de Krenak não teria me ensinado nada. Mas, e esse é um fato denunciado pelo líder indígena, o capitalismo, o consumismo, ocasiona o ocaso da vida, e esse sistema busca, de todas as formas, se legitimar enquanto bom, saudável e necessário, criando mitos, como o da sustentabilidade, que foi
(...) inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. (KRENAK, 2021, p. 16-17).
Uma oposição extraordinária trazida pelo livro, onde o autor se embasa em José Mujica, é a de cidadãos versus consumistas. Desde criança não somos educados para a cidadania, para nos engajarmos com a nossa identidade de filhos da Terra. O que ocorre é que desde a mais tenra idade somos condicionados a consumir, e, como diz o ditado, “o cliente tem sempre razão”. E nisso a desrazão impera, pois há a promoção de uma sociedade mimada e destruidora, pois, para ter é preciso tirar. Mais carro, menos natureza. Simples assim.
O que Krenak propõe é a criação de novos sentidos, que beiram a esfera do sonho, todavia, um sonho que em nada se confunde com o “sonho em ter dinheiro”. E quais sentidos seriam esses? O de valorizar a Terra, pois, do contrário, vamos adoecer (na verdade, já estamos demasiado doentes). É preciso dar valor aos rios, às montanhas, aos pássaros, ao ser humano como algo diferente por natureza. Somos todos diferentes uns dos outros, e isso deve ser respeitado e promovido para além de uma fraseologia abstrata.
Acima foi dito que é preciso respeitar as montanhas. Na história, e mesmo na contemporaneidade, há povos que as valorizam enquanto seres vivos (o que de fato são!). Não custa eu trazer a esta resenha um icônico caso na América Latina, esta dada como exemplo por Krenak de respeito às montanhas. Para os incas, Machu Picchu era e é (seus descendentes não desapareceram!) uma montanha sagrada. É significativo que aquele povo dos Andes tenha escondido dos colonizadores espanhóis os caminhos que levavam até a cidade sagrada, sendo está só descoberta em 1911, pelo estadunidense Hiram Bingham. Mas, eu trouxe o exemplo inca para dizer que aquela montanha possui até um formato humano, de um rosto, como é possível visualizar abaixo. A foto foi tirada por mim em julho de 2016.
O que ocorre com Machu Picchu e o que ocorre com tantos outros lugares desse tipo ao redor do mundo, é que eles se tornam fontes de renda para o turismo. Turismo, entretanto, muitas vezes como um fim em si mesmo: consumista e descartável. “Tirei foto, agora vou embora” – muitos dizem nada além disso. Quanto aprendizado perdido... Contra essa mentalidade, Krenak cita o caso dos Massai, no Quênia:
Os Massai, no Quênia, tiveram um conflito com a administração colonial porque os ingleses queriam que a montanha deles virasse um parque. Eles se revoltaram contra a ideia banal, comum em muitos lugares do mundo, de transformar um sítio sagrado num parque. Eu acho que começa como parque e termina como parking. Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora. (KRENAK, 2021, p. 19).
Outro aspecto interessante de “Ideias para adiar o fim do mundo” e que é convergente com a citação anterior e com a imagem de Machu Picchu, é que para os Krenak, o rio Doce é o avô deles. Sim, o avô! Qual o problema quanto a isso? Não há nenhum, a menos para quem ainda não sentiu a vida enquanto vida, que tudo possui vida e está intimamente ligado, de modo que tudo coopera para a reprodução da existência. O que dói em Ailton Krenak, e que também me dói, é que o seu avô se encontra em coma há certo tempo, e que o seu povo tem o risco de ficar órfão (o autor diz que o povo já está órfão). E por que isso? Porque houve um ato criminoso em 5 de novembro de 2015, por parte da Mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, que contaminou o rio Doce. Quanto choro há no mundo... A imagem abaixo foi tirada por mim em maio de 2017, e mostra o quanto estava em agonia aquele valioso rio, o avô dos Krenak.
Para escrever esta resenha, eu próprio me coloquei em xeque por diversas vezes, mas busquei e busco sair deles ou ao menos adiar o mate. Ao ler o livro aqui em discussão, eu pude meditar nas obras “O mal-estar na civilização”, de Freud, em “Modernidade líquida”, de Bauman, em “A gaia ciência”, de Nietzsche, e em muitas outras... E como é possível adiar o mate, apesar da trágica lógica a promover o fim do mundo? como é possível lutar contra um “(...) governo brutalmente ecocida e etnocida” (CASTRO, 2020, p. 81), como o(s) criticado(s) por Krenak? O autor, de forma poética, sonhadora e realista, propõe criarmos “paraquedas coloridos”. Já que estamos em queda, nada mais coerente do que criarmos paraquedas. E o que isso significa? Que precisamos questionar o fim do mundo e, nós próprios, buscarmos a diferença, o que representa, segundo Krenak, que contemos histórias. Contar histórias não é um “refletir sobre”, não é uma apologia da opressão e do cativeiro, mas uma defesa do sonho, de um sonho vinculado à terra.
Não custa trazer, por fim, a definição do que ‘krenak” significa: “cabeça da terra” (KRENAK, 2021, p. 48). Que sejamos cabeças da terra!
Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Eduardo Viveiros de Castro. Posfácio: Perguntas Inquietantes. In: Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.