A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


“Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 11/01/2022
  • Compartilhar:

Ailton Krenak, um líder indígena do povo Krenak, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, questiona o leitor logo nas primeiras linhas: o que é, afinal, a humanidade? Ninguém pode responder uma pergunta desse nível de modo apressado, sob o risco de tomar uma rasteira. A rasteira, contudo, vem mesmo assim, até porque uma imagem que é recorrente no livro é a de que nós estamos em queda. Porém, quem é esse “nós”? Para Ailton Krenak, ao a humanidade ocidental elevar o ser humano e rebaixar a natureza, há o princípio errôneo de humanidade enquanto o “nós” e o restante enquanto coisa, enquanto “eles”, o que tantas vezes gerou um “nós contra eles”. Essa dicotomia é um pensamento errado que promove o fim do mundo, enquanto que Krenak quer outro horizonte, adiar o fim do mundo.

É preciso estender um pouco mais a ideia do parágrafo anterior, com a questão: quais as consequências da oposição entre ser humano e natureza, entre povos civilizados e povos bárbaros? Trata-se do surgimento das dicotomias: luz versus trevas, ricos versus pobres, saudáveis versus doentes, dentre outras. O trágico é que a luz é ela própria um carro-chefe para escurecer o mundo, deixando-o sem vida, posto que luz acaba se confundindo com progresso, com técnica, com fábricas, com destruição da natureza.

O capitalismo, em sua ânsia por engolir o mundo, termina por ser o fim do ser humano. Estou aqui a promover o fim da história? Não, até porque, se assim fosse, o livro de Krenak não teria me ensinado nada. Mas, e esse é um fato denunciado pelo líder indígena, o capitalismo, o consumismo, ocasiona o ocaso da vida, e esse sistema busca, de todas as formas, se legitimar enquanto bom, saudável e necessário, criando mitos, como o da sustentabilidade, que foi

(...) inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. (KRENAK, 2021, p. 16-17).

Uma oposição extraordinária trazida pelo livro, onde o autor se embasa em José Mujica, é a de cidadãos versus consumistas. Desde criança não somos educados para a cidadania, para nos engajarmos com a nossa identidade de filhos da Terra. O que ocorre é que desde a mais tenra idade somos condicionados a consumir, e, como diz o ditado, “o cliente tem sempre razão”. E nisso a desrazão impera, pois há a promoção de uma sociedade mimada e destruidora, pois, para ter é preciso tirar. Mais carro, menos natureza. Simples assim.

O que Krenak propõe é a criação de novos sentidos, que beiram a esfera do sonho, todavia, um sonho que em nada se confunde com o “sonho em ter dinheiro”. E quais sentidos seriam esses? O de valorizar a Terra, pois, do contrário, vamos adoecer (na verdade, já estamos demasiado doentes). É preciso dar valor aos rios, às montanhas, aos pássaros, ao ser humano como algo diferente por natureza. Somos todos diferentes uns dos outros, e isso deve ser respeitado e promovido para além de uma fraseologia abstrata.

Acima foi dito que é preciso respeitar as montanhas. Na história, e mesmo na contemporaneidade, há povos que as valorizam enquanto seres vivos (o que de fato são!). Não custa eu trazer a esta resenha um icônico caso na América Latina, esta dada como exemplo por Krenak de respeito às montanhas. Para os incas, Machu Picchu era e é (seus descendentes não desapareceram!) uma montanha sagrada. É significativo que aquele povo dos Andes tenha escondido dos colonizadores espanhóis os caminhos que levavam até a cidade sagrada, sendo está só descoberta em 1911, pelo estadunidense Hiram Bingham. Mas, eu trouxe o exemplo inca para dizer que aquela montanha possui até um formato humano, de um rosto, como é possível visualizar abaixo. A foto foi tirada por mim em julho de 2016.

Machu Picchu

 

O que ocorre com Machu Picchu e o que ocorre com tantos outros lugares desse tipo ao redor do mundo, é que eles se tornam fontes de renda para o turismo. Turismo, entretanto, muitas vezes como um fim em si mesmo: consumista e descartável. “Tirei foto, agora vou embora” – muitos dizem nada além disso. Quanto aprendizado perdido... Contra essa mentalidade, Krenak cita o caso dos Massai, no Quênia:

Os Massai, no Quênia, tiveram um conflito com a administração colonial porque os ingleses queriam que a montanha deles virasse um parque. Eles se revoltaram contra a ideia banal, comum em muitos lugares do mundo, de transformar um sítio sagrado num parque. Eu acho que começa como parque e termina como parking. Porque tem que estacionar esse tanto de carro que fazem por aí afora. (KRENAK, 2021, p. 19).

Outro aspecto interessante de “Ideias para adiar o fim do mundo” e que é convergente com a citação anterior e com a imagem de Machu Picchu, é que para os Krenak, o rio Doce é o avô deles. Sim, o avô! Qual o problema quanto a isso? Não há nenhum, a menos para quem ainda não sentiu a vida enquanto vida, que tudo possui vida e está intimamente ligado, de modo que tudo coopera para a reprodução da existência. O que dói em Ailton Krenak, e que também me dói, é que o seu avô se encontra em coma há certo tempo, e que o seu povo tem o risco de ficar órfão (o autor diz que o povo já está órfão). E por que isso? Porque houve um ato criminoso em 5 de novembro de 2015, por parte da Mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, que contaminou o rio Doce. Quanto choro há no mundo... A imagem abaixo foi tirada por mim em maio de 2017, e mostra o quanto estava em agonia aquele valioso rio, o avô dos Krenak.

Bento Rodrigues, distrito de Mariana, onde ocorreu o rompimento da barragem. Na foto, de 2017, ainda é possível verificar o caos ocasionado pelo crime (que não foi um acidente!). Havia proibição de entrar nessa área, mas eu admito que desobedeci. Havia proibição de entrada, porém, ninguém trabalhava no local, tudo estava abandonado.

 

Para escrever esta resenha, eu próprio me coloquei em xeque por diversas vezes, mas busquei e busco sair deles ou ao menos adiar o mate. Ao ler o livro aqui em discussão, eu pude meditar nas obras “O mal-estar na civilização”, de Freud, em “Modernidade líquida”, de Bauman, em “A gaia ciência”, de Nietzsche, e em muitas outras... E como é possível adiar o mate, apesar da trágica lógica a promover o fim do mundo? como é possível lutar contra um “(...) governo brutalmente ecocida e etnocida” (CASTRO, 2020, p. 81), como o(s) criticado(s) por Krenak? O autor, de forma poética, sonhadora e realista, propõe criarmos “paraquedas coloridos”. Já que estamos em queda, nada mais coerente do que criarmos paraquedas. E o que isso significa? Que precisamos questionar o fim do mundo e, nós próprios, buscarmos a diferença, o que representa, segundo Krenak, que contemos histórias. Contar histórias não é um “refletir sobre”, não é uma apologia da opressão e do cativeiro, mas uma defesa do sonho, de um sonho vinculado à terra. 

Não custa trazer, por fim, a definição do que ‘krenak” significa: “cabeça da terra” (KRENAK, 2021, p. 48). Que sejamos cabeças da terra!

 

Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Eduardo Viveiros de Castro. Posfácio: Perguntas Inquietantes. In: Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.