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PARTE 4 – “A DIVINA COMÉDIA – PARAÍSO”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 20/05/2024
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Sobre a última parte de “A Divina Comédia”, só posso dizer uma palavra: sublime. Para mim, a leitura fluiu incrivelmente, a ponto de que cheguei a acordar mais cedo só para acompanhar a viagem do poeta, algo que até hoje me ocorreu com poucos livros.

Logo no início do “Paraíso”, no Canto II, Dante adverte que não são todos que conseguirão acompanhá-lo em sua jornada, pois ela exige um preparo profundo. Assim diz o poeta:

 

“Ó vó que em pequenina barca estais,

e o lenho meu que canta e vai, ansiados

de podê-lo escutar, acompanhais,

 

voltai aos vossos portos acostumados,

não vos meteis no mar em que, presumo,

perdendo-me estaríeis extraviados.” (ALIGHIERI, 2019, p. 19).

 

         Se no “Inferno” são círculos e no “Purgatório” são cornijas, no “Paraíso” são céus a serem “escalados”. “Escalados” entre aspas, pois Dante não subirá, a exemplo do que fez na segunda parte de sua obra, mas mudará de um céu para o outro na companhia de Beatriz. Se nos dos primeiros reinos o guia era Virgílio, no último será Beatriz, que, santificada, poderá mediar o encontro do florentino até com o próprio Deus. A exemplo do que fiz nas outras duas partes desta longa análise, apresento a arquitetura do céu.

Na imagem, é possível visualizar todos os reinos, “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”. Inferno: Terra; Purgatório: Montanha. Paraíso: Céus.
Fotos: Divulgação

Terra

Esfera do ar

Esfera do fogo

1º Céu da Lua

2º Céu de Mercúrio

3º Céu de Vênus

4º Céu do Sol

5º Céu de Marte

6º Céu de Júpiter

7º Céu de Saturno

8º Céu das estrelas fixas

9º Céu (cristalino): Primum Mobile

EMPÍREO

Rosa dos Beatos

Nove círculos angélicos

Para uma boa leitura do “Paraíso”, o leitor deve pesquisar: mitologia greco-romana, astronomia, história da Itália (com ênfase em Florença), e a história dos santos (hagiografia). Apenas o último aspecto é algo novo em matéria de destaque, mas os demais são pressupostos para entender o “Inferno” e o “Purgatório”.

Se engana, contudo, quem pensa que no Paraíso há somente anjos e santos entoando louvores. Eles de fato existem, mas Dante, que ainda possui forma corpórea, segue com dúvidas e as dirige a diversas pessoas ilustres ao longo dos céus. Dante se encontra, por exemplo, com nobres (Henrique VII), com santos (São Bernardo e São Bento), com pensadores (Tomás de Aquino e Anselmo) e até com o seu trisavô, o cruzado Cacciaguida (que está no quinto céu, destinado aos combatentes e mártires). É para o trisavô que Dante, angustiado, pergunta se devia ou não relatar tudo o que viu em suas viagens espirituais. A pergunta tem total sentido, pois a simples leitura do “Inferno” mostra a coragem do poeta em colocar nesse reino personagens ilustres da antiguidade e de sua época, como Odisseu (tomado como baluarte de mau conselheiro) e o papa Bonifácio VIII (o mais odiado por Dante; este papa, no Canto XXVII do “Paraíso” será condenado inclusive pelo apóstolo Pedro). Mas, Cacciaguida lhe conforta, o que encoraja Dante a seguir com os seus relatos.

 

Dante:

“Caro avoengo tão alto protuso,

que, como enxergam as terrenas mentes

num triângulo caber um só obtuso,

 

tu assim todas as coisas contingentes,

antes de serem, vês, no aspecto absorto

em que todos os tempos são presentes;

 

quando Virgílio me levava a porto,

pela montanha que suas almas cura

e, antes, descendo pelo mundo morto,

 

foram-me feitos, pra vida futura,

graves presságios e, embora eu resista

qual tetrágono aos golpes da ventura,

 

bem gostaria de ter à minha vista

o que a minha fortuna me ofereça,

pois vem mais lenta a flecha já prevista.” (ALIGHIERI, 2019, p. 122).

 

Trisavô:

“A contingência que, além do caderno

da vossa condição, mais não se estende,

toda é patente no Semblante Eterno;

 

dela, necessidade não depende,

assim como independe de um olhar,

que a siga, o rumo que uma nau empreende.

 

De lá, qual de órgão um doce soar

que ao meu ouvido vem, vejo surgir-

me à vista o que tu deverás passar.

(...)

A culpa restará co’a parte ofensa,

como sói suceder, mas a vingança

fará testigo ao Vero que a dispensa.” (ALIGHIERI, 2019, p. 123).

 

Dante:

“Percebo bem, pai meu, como aguilhoa

o tempo contra mim, pra o golpe dar-me

que é mais grave pra quem desacorçoa;

 

donde, de precaução convém que me arme,

que, perdendo o lugar que me é mais caro,

não vão, meus versos, dos outros privar-me.” (ALIGHIERI, 2019, p. 125).

 

Trisavô:

“ (...) Consciência impura,

seja da própria ou de alheia vergonha,

certo achará a tua palavra dura;

 

mas, que a qualquer falsidade se oponha

a tua disposição faz manifesta;

e deixa cada qual coçar sua ronha.

 

Que, se a tua voz se afigurar molesta

à prima prova, vital nutrimento

poderá fornecer quando digesta.

 

Esse teu grito será como o vento

que aos sumos cimos alça os lanhos seus,

o que à tua honra traz bom argumento.

 

Por isso te é mostrado nestes Céus,

como no Monte e na vala sofrida,

só os que a fama elevara aos olhos teus;

 

que do ouvinte a razão sempre trepida,

nem sela fé em modelo procedente

de raiz duvidosa e escondida,

nem em prova qualquer não evidente.” (ALIGHIERI, 2019, p. 125-126).

 

Algo que é preciso destacar é que a cada céu que Dante e Beatriz sobem mais esta brilha e fica bela. Dante percebe isso, e a explicação é que quanto mais sobem mais próximos de Deus ficam. Haverá um ponto em que a beleza de Beatriz será tão grande que ela não poderá sorrir, ou Dante não poderá ver o seu sorriso, pois ele não aguentará, por ainda ser humano, tamanha beleza divina.

Representação de Gustave Doré. Canto XII. Os beatos voltam ao seu rodar e ao entorno deles surge outra coroa que também possui doze lumes.

Dante, enquanto escrevia “A Divina Comédia”, estava exilado. Apesar disso, não perdia a esperança de um dia, em especial por meio de sua sublime obra poética, regressar a Florença reconhecido tanto pela sua poesia quanto pela sua fé (Canto XXV). Todavia, o poeta sabia que isso não seria fácil, motivo pelo qual, e também pela corrupção de sua terra natal, chamou Florença de filha de Lúcifer (Canto IX).

Eu admito que ler o “Paraíso” foi dos momentos mais belos que já tive como leitor. Por meio de Dante, que se tornou o meu guia, eu pude ver figuras ilustres da história da humanidade, em especial da história cristã. Os diálogos dos apóstolos Pedro, Tiago e João, por exemplo, são maravilhosos.

A exemplo que que ocorreu com Virgílio, também Beatriz se despede de Dante, momento em que ela pede para São Bernardo ajudá-lo em sua viagem até conseguir enxergar o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É emocionante saber que a mulher que Dante nunca esqueceu o ajudou a sair da “selva escura” e o ajudou a se encontrar e a visar as “coisas do alto”, como diz a Bíblia (Colossenses 3:2).  E é na ocasião da despedida de Beatriz que é possível ler esses versos:

 

“Todo o feitio geral do Paraíso

já pelo meu olhar tendo entendido,

sem ter fixado ponto algum preciso,

 

voltei-me ora com zelo reacendido

buscando Beatriz, por ter-lhe exposta

uma dúvida que me havia surgido.

 

Uma foi a pergunta e outra a resposta:

pensei em Beatriz e vi um glorioso

velho co’a branca estola no ombro posta.

 

Difundia todo o seu semblante anoso

amável regozijo, e o seu olhar

o aprazimento de um pai carinhoso.

 

“Onde ela está?”, foi pronto o meu indagar,

e ele: “Pra o anseio teu cumprir, moveu-

me ora a sua Beatriz do meu lugar;

 

e se ao alto mirares, do apogeu

no terço giro, vê-la irás poder,

no trono que o seu mérito lhe deu”.

 

Os olhos levantei, sem responder,

e ela eu vi, que se fazia coroa

da eterna luz que nela ia se acolher.

 

Da região onde mais alto troa,

olho mortal algum tanto não dista,

ao fundo ainda de um mar que o não perdoa,

 

quanto, ora, de Beatriz à minha vista;

e às mais claras feições suas me detive,

que já não vinham por mediação mista.

 

“Ó dama em quem minha esperança vive,

e que, por mim, no Inferno até inscreveste

o rastro teu quando eu perdido estive;

 

por tantas coisas que me ofereceste

conhecer, por sua força, tua bondade,

graça e valor a agradecer sou preste.

 

De servo me hás trazido à liberdade,

por todo modo e por toda via

a que bastasse a tua potestade.

 

Em mim teu alto influxo custodia,

pra que minha alma, que tu alçaste avante,

ao desprender-se ainda te sorria.”

 

Assim orei, e ela, tão distante

quão parecia, sorriu e olhou pra mim,

e à Eterna Fonte volveu seu semblante.” (ALIGHIERI, 2019, p. 217-218).

Representação de Gustave Doré. Dante, ao lado de São Bernardo, observa o Empíreo. Canto XXXI.

Após a despedida, o esperado acontece. Ainda que com toda a limitação corporal, Dante é capaz de ver e de sentir a Santíssima Trindade. Não é preciso ser cristão para se emocionar com esse esperado encontro. Trata-se de toda a meta de “A Divina Comédia” e do próprio pai e fundador da língua italiana. Esse encontro não é pouca coisa. Na verdade, esse encontro é uma grande coisa.

 

“Ó eterna Luz que repousas só em Ti;

a Ti só entendes e, por Ti entendida,

respondes ao amor que te sorri!

 

O círculo que, qual luz refletida,

gerado parecia do teu Fulgor,

à minha vista, à sua volta entretida,

 

dentro de si, e na sua própria cor,

de nossa efígie mostrava a figura,

que prendeu meu olhar indagador.

 

Qual geômetra que, com fé segura,

volta a medir o círculo, se não

lhe acha o princípio que ele em vão procura,

 

tal estava eu ante a nova visão:

buscava a imagem sua corresponder

ao círculo, e lhe achar sua posição.

 

Mas não tinha o meu voo um tal poder;

até que minha mente foi ferida

por um fulgor que cumpriu Seu querer.

 

À fantasia foi-me a intenção vencida;

mas já a minha ânsia, e a vontade, volvê-las

fazia, qual roda igualmente movida,

 

o Amor que move o Sol e as mais estrelas.” (ALIGHIERI, 2019, p. 233-234).

 

Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2010.

Dante Alighieri. A Divina Comédia – Paraíso. Trad. de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2019.

 

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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