PARA ALÉM DO ÓBVIO: O ESTRANHAMENTO
Em O Poço, filme espanhol dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia e lançado em 2019, o personagem Trimagasi não economiza na utilização da palavra óbvio. Recluso em uma prisão vertical, ele é o responsável por receber o protagonista Goreng e dar as primeiras informações sobre o funcionamento do cárcere. Ávido de saber o que ali se passa, Goreng é obrigado a ouvir sempre a mesma resposta para cada pergunta. É óbvio que há divisão na prisão, é obvio que os de cima comem melhor que os de baixo e óbvio é que cada um, quando ocupar os primeiros andares, fará a mesma coisa. O protagonista, porém, não se satisfaz com as supostas obviedades e, como pode, começa a coletar informações em busca de uma visão mais profunda do – ele vai descobrir aos poucos – igualmente profundo poço. Inquietando-se com o que via e vivia, Goreng sente e nos instiga a sentir um forte estranhamento a respeito de uma organização – a prisão – em que “há os de cima, os de baixo e os que caem”.
Em geral, nós tendemos a nos habituarmos com o que acontece repetidamente ao nosso redor. Como Trigamasi, inclinamo-nos a considerar como óbvia e normal a realidade que nos cerca. Isso ocorre porque nós tanto nos acostumamos com a vida cotidiana que ela se torna familiar e auto-evidente. Esta “normalização” da vida social ocorre tanto em momentos triviais como hábitos rotineiros, quanto em situações mais dramáticas como a fome, a miséria, a violência, a guerra, o racismo, a misoginia, as quais, parecem, vão se tornando paisagem do cotidiano. Dificilmente notamos tais questões e, quando muito, sentenciamos conformadamente: “sempre foi assim, nada vai mudar, o que se pode fazer?”.
Podemos tomar a inquietude de Goreng, por outro lado, como um ponto de partida para compreendermos o estranhamento como elemento fundamental para a compreensão da realidade social. Uma forma de desenvolver tal habilidade é colocar nossos hábitos em comparação com os de outros povos. Ao observá-los, espantamo-nos ao encontrarmos formas alimentares, organizações familiares, crenças religiosas que nos parecem bizarras, exóticas, inferiores, imorais. Tais grupos, por sua vez, possivelmente, veriam os nossos hábitos como estranhos, exóticos etc. enquanto os deles próprios como normais.
Mas e se fizéssemos o caminho contrário, buscando estranhar o que é nosso e ver como normal o que está longe? Feito desta maneira, o estranhamento pode se tornar uma importante ferramenta para o aprimoramento do pensamento reflexivo. O segredo é distanciarmo-nos do sentimento familiarização que temos em relação à nossa própria sociedade, fazendo um esforço intelectual para olhar para as nossas próprias construções sociais e culturais como se fossem para nós desconhecidas. Tal postura, além de nos ajudar a entender as diferenças culturais e sociais, possibilita compreendermos nossa própria organização social de maneira mais sofisticada.
Estranhar significa, assim, olhar para a realidade social e cultural como se ela fosse absoluta novidade. Deste modo, poderíamos encontrar respostas novas para perguntas como estas: por qual razão vivemos da forma como vivemos? Por qual motivo nossas religiões são essas e não outras? Por que, em nossa sociedade, há escolas boas e outras ruins? Crianças que comem bem e dormem bem e outras que mal comem e mal dormem? Por qual razão existe pobreza, desigualdade, violência? O que leva homens a espancaram mulheres ou mesmo a outros homens por não concordarem com os desejos deles?
Em certa medida, é isso que o personagem Goreng faz no longa O Poço. Diferentemente dos demais, ele não aceita a obviedade da situação. Espanta-se com o horror e recusa aceitá-lo como normal. Semelhante deve ser a postura de quem deseja conhecer o mundo social. Este deve educar-se para olhar o que vê ao seu redor como se o visse pela primeira vez e, desta maneira, afastar-se do sentimento de familiaridade, duvidar das explicações cristalizadas, fugir das respostas óbvias e prontas. Proceder dessa maneira mostra que os fenômenos sociais talvez não tenham as explicações que nós pensávamos ter, permite-nos notar aspectos que antes não víamos, relações que antes pareciam não existir e, dessa maneira, encontrar explicações novas, criativas e mais complexas.