NUNCA DIGA ISSO É NATURAL!
A frase que dá título a este artigo foi escrita pelo poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) na abertura da peça teatral A Exceção e a Regra. A obra é uma magnífica reflexão contra a exploração humana e chama a nossa atenção para o fato de que as sociedades e as relações que se estabelecem dentro delas não são em nada naturais. Ela indica que não há explicação para as dinâmicas de funcionamento das sociedades que não tenha como ponto de partida a compreensão de que as relações sociais são frutos da ação humana.
O que significa afirmar que os fenômenos sociais não são naturais? Para obter esta resposta precisamos compreender o que significa naturalizar. Há quem diga, por exemplo, que é natural a existência de desigualdade social, de pobreza para uns, riqueza para outros. Os bem aquinhoados acumularam fortunas porque teriam trabalhado muito, dado duro, se esforçado, estudado, acordado muito cedo, dormido tarde, sacrificado finais de semana e feriados, horas de sono e o conforto da família. Os pobres, por sua vez, seriam herdeiros da sua falta de vontade, esforço ou dedicação. Afinal, diriam,
aqueles que querem correm atrás e conquistam.
Igualmente natural seria o comportamento dos homens em relação às mulheres. Os primeiros possuiriam instintos incontroláveis, o que explicaria o abuso e o assédio realizado contra o outro sexo. “Prenda as cabritas porque os bodes estão soltos”, dizia-se antigamente. Hoje, cada vez que uma mulher é vítima de violência sexual, faz-se questão de escrutiná-la: “também, com aquela roupa, àquela hora da noite, sozinha, estava pedindo”. Explica-se que o violador agiu puramente seguindo seus mais profundos desejos de macho, incontroláveis diante de uma fêmea provocante.
Em suma, afirmações com estas são exemplos do que chamamos de naturalização, o que nada mais é que equiparar as relações sociais ao que acontece no mundo da natureza. Nestes termos, a ordem social é o que é porque foi dessa maneira que a natureza determinou. Num sentido mais amplo, o lugar da natureza pode ser ocupado por qualquer outra força externa ao homem, como um deus, um espírito, os astros ou uma essência. Ou seja, a lógica da naturalização está em buscar justificativas para o social naquilo que está fora do campo da ação humana.
As pesquisas sociológicas, históricas e de outras ciências humanas, no entanto, têm demonstrado que em vez de naturais, as formas de organização humana são produtos da criação dos homens e mulheres. É verdade que somos seres naturais à medida que, como qualquer outro, somos resultados do biológico, do natural. Todavia, a natureza nos proveu de uma capacidade que os demais seres não possuem. Somos os únicos que desenvolvem cultura, símbolos, hábitos, costumes, objetos e as mais variadas formas de organização social. Neste sentido, à nossa origem natural se sobrepõe uma roupagem histórica e social.
Podemos observar ao longo do tempo inúmeras transformações nos modos de vida humanos, enquanto na mesma temporalidade os seres da natureza permanecem relativamente iguais. Qual diferença há, por exemplo, entre os formigueiros da antiguidade e os atuais? Nós, humanos, por outro lado, vamos inventando arranjos sociais que variam no tempo e no espaço. O que pensaria um homem da Idade Média, por exemplo, se ele viajasse no tempo e nos observasse escolhendo governantes, vivendo em cidades e hipnotizados por nossos smartphones?
De fato, a sociedade – com todas as suas contradições – é obra dos próprios sócios. Assim, pobreza e riqueza encontram explicações não no caráter natural das pessoas, mas nas maneiras como as relações sociais se estabeleceram ao longo do tempo. Igualmente, a violência contra as mulheres finca raízes não numa incontrolável natureza masculina, mas no surgimento do patriarcalismo que foi se estabelecendo e se impondo de geração em geração e que trata as mulheres como objetos que devem se submeter ao masculino. Falta-nos espaço aqui para explorar inúmeros outros exemplos, mas o fato é que o que os seres humanos são, a forma como vivem, suas crenças, valores, transformações, política e até mesmo as desigualdades, as violências, os preconceitos não são obras da natureza, mas consequência da ação humana. Somos, assim, seres históricos e sociais, de modo que nossas mazelas e belezas são obras exclusivamente nossas.